Biografia de Freud
Sigmund Freud (Viena,1856 – Londres, 1939), médico austríaco e fundador da psicanálise. Nascido em Freiberg, na Moravia (ou Pribor, na República Tcheca), em 6 de maio de 1856, e chamado Schlomo (Salomo) Sigismund, Sigmund Freud era filho de Amália Freud e de Jacob Freud, e filho mais velho do terceiro casamento de seu pai.
Circuncidado ao nascer, o jovem Sigmund recebeu uma educação judaica não tradicionalista e aberta à filosofia do Iluminismo. Era adorado pela mãe, que o chamava “meu Sigi de ouro”, e amado pelo pai, que lhe transmitiu os valores do judaísmo clássico. Tinha uma afeição especial por sua governanta tcheca e católica, Monika Zajic, apelidada Nannie, que o levava para visitar igrejas, falava-lhe do “bom Deus” e lhe revelou outro mundo além do judaísmo e da judeidade. Talvez ela também tenha desempenhado um papel em sua aprendizagem da sexualidade.
Freud nasceu em uma família de abastados comerciantes judeus. Sempre se destaca a complexidade das relações intrafamiliares. Seu pai, Jakob Freud, que exercia o ofício de comerciante de lã e têxteis, casou-se, pela primeira vez, aos 17 anos e teve dois filhos (Emmanuel e Philippe). Viúvo, casa-se novamente com Amália Nathanson, de 20 anos, idade do segundo filho de Jakob. Freud será o mais velho dos oito filhos do segundo casamento de seu pai, e seu companheiro preferido de brinquedos foi seu sobrinho, que tinha um ano a mais do que ele. Do casamento de Jacob e Amália nasceram os seguintes irmãos de Freud: Julius, Anna, Débora (Rosa), Marie (Mitzi), Adolfine (Dolfi), Pauline (Paula) e Alexander.
Quando tinha 3 anos, em outubro de 1859, Jacob e a família deixaram Freiberg, onde seus negócios não prosperavam em virtude da introdução do maquinismo e do desenvolvimento da industrialização o que provocou uma queda dos rendimentos familiares . Instalou-se então em Leipzig, esperando encontrar nessa cidade melhores condições para o comércio de têxteis. Para Freud, essa partida permanecerá sempre dolorosa. Merece ser lembrado um ponto que ele próprio menciona: o amor sem desfalecimentos que sua mãe sempre lhe votou, ao qual atribui a confiança e a segurança que demonstrou em todas as circunstâncias.
Por sua vez, Emanuel e Philipp emigraram para Manchester. Um ano depois, não tendo conseguido modificar sua má situação econômica, Jacob decidiu estabelecer-se em Leopoldstrasse, o bairro judeu de Viena. Entre 1865 e 1873, o jovem Sigmund freqüentou o Realgymnasium e depois o Obergymnasium, onde ficou conhecendo Eduard Silberstein, com quem manteve sua primeira grande correspondência intelectual, notadamente a respeito de Franz Brentano. Nessa época, apaixonou-se por Gisela Fluss, filha de um negociante amigo do seu pai. Mais tarde, fez amizade com Heinrich Braun (1854-1927), que despertaria seu interesse pela política e depois se orientaria para o socialismo.
Foi um aluno muito bom em seus estudos secundários, e foi sem uma vocação especial que no outono de 1873, Freud começou seu estudo de medicina. Devem se destacar duas coisas, uma ambição precocemente formulada e reconhecida e “o desejo de contribuir com alguma coisa, durante sua vida, para o conhecimento da humanidade” (“Psicologia dos Estudantes”,1914). Sua curiosidade, “que visava mais às questões humanas do que às coisas da natureza” (“Um Estudo Autobiográfico” [Selbstdarstellung],1925) leva-o a acompanhar, ao mesmo tempo, durante três anos, as conferências de F. Brentano, várias delas dedicadas a Aristóteles. Em 1880, publicou a tradução de vários textos de J.S.Mill: “Sobre a emancipação da mulher”, “Platão”, “A questão operária”, “O socialismo”.
Em setembro de 1886, depois de um noivado de vários anos, desposa Martha Bernays, com quem terá cinco filhos. Em 1883, é nomeado docente-privado (que equivale, na França, ao título de mestre conferencista) e professor honorário em 1902. Apesar de todos os tipos de hostilidade e dificuldades, Freud sempre se recusará a abandonar Viena. Foi somente pela pressão de seus alunos e amigos e depois do “Anschluss” de março de 1938 que irá finalmente se decidir, dois meses mais tarde, a partir para Londres.
Apaixonou-se pela ciência positiva, e principalmente pela biologia darwiniana (que serviria de modelo para todos os seus trabalhos). Em 1874, pensou em ir a Berlim, para freqüentar os cursos de Hermann von Helmholtz. Um ano depois, com o estímulo de Carl Claus, seu professor de zoologia, obteve uma bolsa de estudos que lhe permitiu ir a Trieste estudar a vida das enguias (machos) de rio. Sua primeira publicação data de 1877: “Sobre a Origem das Raízes Nervosas Posteriores da Medula Espinhal dos Amoceta” (Petromyzon planeli), enquanto a última, referente às Paralisias cerebrais infantis, de 1897, esse texto mostra que Freud trabalhava na elaboração de uma teoria do funcionamento específico das células nervosas (os futuros neurônios), como se veria em seu “Projeto para uma psicologia científica” de 1895. Durante esses 20 anos, pode-se reunir 40 artigos (fisiologia e anátomo-histologia do sistema nervoso).
Freud entrou no Instituto de Fisiologia, dirigido por E.Brücke, após três anos de estudos médicos, em 1876. Depois dessa experiência, Freud passou do instinto de zoologia para o de fisiologia, tornando-se aluno de Ernst Wilhelm von Brucke, eminente representante da escola antivitalista fundada por Helmholtz. Foi nesse instituto, onde ficou seis anos, que fez amizade com Josef Breuer. Entre 1879 e 1880, forçado a uma licença para cumprir o serviço militar, enganava o tédio traduzindo quatro ensaios de John Stuart Mill (1806-1873), sob a direção de Theodor Gomperz (1832-1912), escritor e helenista austríaco, responsável pela publicação alemã das obras completas desse filósofo inglês, teórico do liberalismo político.
O trabalho de Freud sobre a afasia (Uma concepção da afasia, estudo crítico[Zur Auffassung der Aphasien], 1891) permanecerá na sombra, embora ofereça a mais aprofundada e notável elaboração da afasiologia da época. Suas esperanças de notoriedade tampouco foram satisfeitas por seus trabalhos sobre a cocaína, publicados de 1884 a 1887. Havia descoberto as propriedades analgésicas dessa substância, negligenciando as propriedades anestésicas, que seriam utilizadas com sucesso por K.Koller. A lembrança desse fracasso vai ser um dos elementos que originaram a elaboração de um sonho de Freud, a “monografia botânica”.
Freud se encontrava, no início da década de 1880, na posição de pesquisador em neurofisiologia e de autor de trabalhos de valor, mas que não lhe permitia, por falta de assegurar a subsistência de uma família. Apesar de suas reticências, a única oferecida era abrir um consultório de neurologista na cidade, o que fez, de forma surpreendente, no domingo de Páscoa, 25 de abril de 1886.
Em 1882, depois de obter seu diploma, ficou noivo de Martha Bernays (Martha Freud), que se tornaria sua mulher. Por razões financeiras, renunciou então à carreira de pesquisador e decidiu tornar-se clínico. Nos três anos seguintes, trabalhou no Hospital Geral de Viena, primeiro no serviço de Hermann Nothnagel, depois no de Theodor Meynert. Ali, ficou conhecendo Nathan Weiss (1851-1883), e quando esse novo amigo se suicidou por enforcamento, Freud ficou transtornado. “Sua vida, escreveu a Martha, parece ter sido a de um personagem de romance, e sua morte uma catástrofe inevitável.”
Pensando em tornar-se célebre e libertar-se da pobreza para poder se casar, acreditava ter descoberto as virtudes da cocaína e administrou-a a seu amigo Ernst von Fleischl-Marxow, que sofria de uma doença incurável. Não percebia a dependência induzida pela droga e ignorava tudo sobre sua ação anestesiante, que seria descoberta por Carl Koller.
Em 1885, nomeado “Privatdozent” de neurologia, Freud obteve uma bolsa de estudos graças à qual pudera realizar um de seus sonhos, ir a Paris. Queria muito encontrar-se com Jean Martin Charcot, cujas experiências sobre a histeria o fascinavam. Foi assim que teve um encontro determinante, na Salpêtrière, com Charcot. Deve-se observar que Charcot não se mostrou interessado nem pelos cortes histológicos que Freud lhe levou, como prova de seus trabalhos, nem pelo relato do tratamento de Anna O., cujos elementos clínicos principais seu amigo J. Breuer lhe tinha comunicado, a partir de 1882. Charcot quase não se interessava pela terapêutica, preocupando-se em descrever e classificar os fenômenos para tentar explica-los de forma racional.
Essa primeira permanência na França marcou o início da grande aventura científica que o levaria à invenção da psicanálise. No Teatro Saint-Martin, Freud assistiu maravilhado à representação de uma peça de Victorien Sardou, interpretada por Sarah Bernhardt: “Nunca uma atriz me surpreendeu tanto; eu estava pronto a acreditar em tudo o que ela dizia.” Depois de Paris, foi a Berlim, onde fez os cursos do pediatra Adolf Baginsky.
De volta a Viena, instalou-se como médico particular, abrindo um consultório na Rathausstrasse. Freud também trabalhava, três tardes por semana, como neurologista na Clínica Steindlgasse, primeiro instituto público de pediatria, dirigido pelo professor Max Kassowitz (1842-1913). Em setembro de 1886, casou-se com Martha, e no dia 15 de outubro fez uma conferência sobre a histeria masculina na Sociedade dos Médicos, onde teve uma acolhida glacial, não em razão de suas teses (etiológicas), como diria depois, mas porque atribuía a Charcot a paternidade de noções que já eram conhecidas pelos médicos vienenses.
Em 1887, um mês depois do nascimento de sua filha Mathilde (Hollitscher), Freud ficou conhecendo Wilhelm Fliess, brilhante médico judeu berlinense, que fazia amplas pesquisas sobre a fisiologia e a bissexualidade. Era o início de uma longa amizade e de uma soberba correspondência íntima e científica. Apesar de várias tentativas, Fliess não conseguiria curar Freud de sua paixão pelo fumo: “Comecei a fumar aos 24 anos, escreveu em 1929, primeiro cigarros, e logo exclusivamente charutos [...]. Penso que devo ao charuto um grande aumento da minha capacidade de trabalho e um melhor autocontrole.”
Freud começa a utilizar os meios de que dispunha, a eletroterapia de W.H. Erb, a hipnose e a sugestão. As dificuldades encontradas levam-no a se ligar a A.A. Liébault e H. M. Bernheim, em Nancy, durante o verão de 1889. Traduz, aliás, as obras deste último para o alemão. Encontra nelas a confirmação das reservas e decepções que ele próprio sentia por tais métodos.
Em setembro de 1891, Freud mudou-se para um apartamento situado no número 19 da rua Berggasse. Ficou ali até seu exílio em 1938, cercado por seus seis filhos (Mathilde, Mrtin, Oliver, Ernst, Sophie Halberstadt, Anna) e de sua cunhada Minna Bernays. Como clínico, tratava essencialmente de mulheres da burguesia vienense, qualificadas como “doentes dos nervos” e sofrendo de distúrbios histéricos. Abandonando o niilismo terapêutico, tão comum nos meios médicos vienenses da época, procurou, ante de tudo, curar e tratar de suas pacientes, aliviando os seus sofrimentos psíquicos. Durante um ano, utilizou os métodos terapêuticos aceitos na época: massagens, hidroterapia, eletroterpia. Mas logo constatou que esses tratamentos não tinham nenhum efeito. Assim começou a utilizar a hipnose, inspirando-se nos métodos de sugestão de Hippolyte Bernheim, a quem fez uma visita por ocasião do primeiro congresso internacional de hipnotismo, que se realizou em Paris em 1889. Em 1891, publicou uma monografia, “Contribuição à concepção das afasias”, na qual se baseava nas teorias de Hughlings Jackson para propor uma abordagem funcional, e não mais apenas neurofisiológica, dos distúrbios de linguagem. A doutrina das “localizações cerebrais” era substituída pelo associacionismo, que abria caminho para a definição de um “aparelho psíquico” tal como se encontraria na metapsicologia: ele faz sua primeira formulação em 1896 e estabelece seus fundamentos no capítulo VII da “Interpretação dos Sonhos”.
Em 1890, consegue convencer seu amigo Breuer a escrever com ele uma obra sobre a histeria. Seu trabalho em comum dará lugar à publicação, em 1893, de “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar”, que irá abrir caminho para “Estudos sobre a histeria”; já se encontra nele a idéia freudiana de defesa, para proteger o sujeito de uma representação “insuportável” ou “incompatível”. No mesmo ano, em um texto intitulado “Algumas Considerações para um Estudo Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas”, publicado em francês em “Archives neurologiques”, Freud afirma que “a histeria se comporta, nessas paralisias e outras manifestações, como se a anatomia não existisse, ou como se ela não tomasse disso nenhum conhecimento”.
Os “Estudos sobre a histeria”, obra comum de Breuer e Freud, são publicados em junho de 1895. A obra comporta, além da Comunicação Preliminar, cinco observações de doentes: a primeira – de Anna O (Bertha Pappenheim) – é redigida por Breuer e é nela que se encontra a expressão tão feliz “Talking Cure”, proposta por Anna O; as quatro seguintes devem-se a Freud. A obra conclui com um texto teórico de Breuer e um outro sobre a psicoterapia da histeria, de Freud, onde se pode ver o início do que irá separar os dois autores no ano seguinte.
Em “L’ Hérédité et l’Étiologie dês Névroses”, publicado em francês, em 1896, na “Revue neurologique”, Freud de fato afirma: “Experiência de passividade sexual antes antes da puberdade; é essa, pois, a etiologia específica da histeria”. No artigo, é empregado pela primeira vez o termo “psicanálise”. Foi também durante esses anos que a reflexão de Freud sobre a súbita interrupção feita for Breuer no tratamento de Anna O levou-o a conceber a transferência.
Finalmente, deve-se assinalar a redação, em poucas semanas, no final de 1895, de “Projeto para uma Psicologia Científica” (Entwurf einer Psychologie), que Freud nunca irá publicar e que constitui, no começo, sua última tentativa de apoiar a psicologia sobre os dados mais recentes da neurofisiologia.
Trabalhando ao lado de Breuer, Freud abandonou progressivamente a hipnose pela catarse, inventou o método da associação livre, e enfim a psico-análise. Essa palavra foi empregada pela primeira vez em 1896, e sua invenção foi atribuída a Breuer. Em 1897, com um relatório favorável de Nothnagel e de Richard von Krafft-Ebing, o nome de Freud foi proposto para receber o prestigioso título de professor extraordinário. Sua nomeação foi ratificada pelo imperador Francisco-José no dia 5 de março de 1902.
Ao contrário de muitos intelectuais vienenses marcados pelo “ódio de si judeu”, Freud, judeu infiel e incrédulo, hostil a todos os rituais e à religião, nunca negaria sua judeidade. Como enfatizou Manès Sperber, ele continuaria sendo “um judeu consciente, que não dissimulava a ninguém sua origem, proclamando-a, ao contrário, com dignidade e freqüentemente com orgulho. Muitas vezes, afirmou que detestava Viena e que se sentia como que libertado a cada vez que se afastava dessa cidade, onde crescera e à qual ficaria ligado, entretanto, por laços indestrutíveis. Sua consciência da identidade judaica permaneceria assim, pois sua origem nunca foi para ele uma fonte de sentimentos de inferioridade, embora ela lhe causasse problemas e dificuldades suplementares, principalmente em sua vida profissional”.
Sua posição doutrinária está centrada na teoria do núcleo patogênico, constituído na infância, por ocasião de um trauma sexual real, decorrente da sedução por um adulto. O sintoma é a conseqüência do recalcamento das representações insuportáveis que constituem esse núcleo, e o tratamento consiste em trazer a consciência os elementos, como se extrai um “corpo estranho” , sendo a conseqüência do levantamento do recalque o desaparecimento do sintoma.
Durante alguns dos anos que antecederam a publicação de “A interpretação de sonhos”, Freud introduz na nosografia, à qual não é indiferente, alguma entidade nova. Descreve a neurose de angústia, separando-a da categoria bastante heteróclita da neurastenia. Isola, pela primeira vez, a neurose obsessiva (alem. Zwangsneurose) e propõe o conceito de psiconeurose de defesa, no qual é integrada a paranóia.
Porém, sua principal tarefa é a auto-análise, termo que irá empregar por pouco tempo. Eis o que diz sobre isto, na carta a W.Fliess, de 14 de novembro de 1887: “Minha auto-análise continua sempre em projeto, agora compreendi o motivo. É porque não posso analisar a mim mesmo a não ser me servindo de conhecimentos adquiridos objetivamente (como para um estranho). Uma verdadeira auto-análise é realmente impossível, de outro modo não haveria mais doença”.
No âmbito de sua amizade com Fliess, ocorreram vários acontecimentos maiores na vida de Freud: sua auto-análise, um intercâmbio de caso (Emma Eckstein), a publicação de um primeiro grande livro, “Estudos sobre a histeria”, no qual são relatadas várias histórias de mulheres (Bertha Pappenheim, Fanny Moser, Aurélia Öhm, Anna von Lieben, Lucy, Elisabeth von R., Mathilde H., Rosalie H.), e enfim o abandono da teoria da sedução segundo a qual toda neurose se explicaria por um trauma real. Essa renúncia, fundamental para a história da psicanálise, ocorreu em 21 de setembro de 1897. Freud comunicou-a a Fliesse em tom enfático, em uma carta que se tornaria célebre: “Não acredito mais na minha Neurótica.”
O encontro com Fliess remonta a 1887. Freud começa a analisar sistematicamente seus sonhos, a partir de julho de 1895. Tudo se passa como se Freud, sem antes se dar conta disso, tivesse utilizado Fliess como intérprete, para efetuar sua própria análise. Seu pai morreu em 23 de outubro de 1896. Poder-se-ia pensar que tal acontecimento não foi estranho à descoberta do complexo de Édipo, do qual se encontra, um ano mais tarde, na carta a Fliess de 15 de outubro de 1897, a seguinte primeira formulação esquemática: “Acorreu-me ao espírito uma única idéia, de valor geral. Encontrei em mim, como em todo lugar, sentimentos de amor para com minha mãe e de ciúme para com meu pai, sentimentos que são, acho eu, comuns a todas as crianças pequenas, mesmo quando seu aparecimento não é tão precoce como nas crianças que se tornaram histéricas (de uma forma análoga à da romantização original nos paranóicos, heróis e fundadores de religiões). Se isso for assim, pode-se compreender, apesar de todas as objeções racionais que se opõem à hipótese de uma fatalidade inexorável, o efeito percebido em ‘Édipo rei’. Também se pode compreender por que todos os dramas mais recentes do destino deveriam acabar miseravelmente...mas a lenda grega percebeu uma compulsão que todos reconhecem, pois todos a”. sentiram. Cada ouvinte foi, um dia, em germe, em imaginação, um Édipo, e espanta-se diante da realização de seu sonho, transportado para a realidade, estremecendo conforme o tamanho do recalcamento que separa seu estado infantil de seu estado atual”.
Começou então a elaborar sua doutrina da fantasia, concebendo em seguida uma nova teoria do sonho e do inconsciente , centrada no recalcamento e no complexo de Édipo. Seu interesse pela tragédia de Sófocles foi contemporâneo de sua paixão por Hamlet. Freud era um grande leitor de literatura inglesa, alimentando-se especialmente da obra de Shakespeare: “Uma idéia atravessou o meu espírito, escreveu a Fliess em 1897, de que o conflito edipiano encenado em ‘Édipo rei’ de Sófocles poderia estar também no cerne de Hamlet. Não acredito em uma intenção consciente de Shakespeare, mas, antes, que um acontecimento real levou o poeta a escrever esse drama, tendo seu próprio inconsciente lhe permitido compreender o inconsciente do seu herói.” A ruptura definitiva com Fliess ocorrerá em 1902.
Depois de 1926, e a despeito de uma longa discussão com James Strachey, Freud acabaria cedendo à crença segundo a qual Shakespeare não era o autor de sua obra. Aliás, esse tema do deslocamento da atribuição de uma paternidade ou de uma identidade se encontraria por várias vezes em sua obra, principalmente em “Moisés e o monoteísmo”, na qual fez de Moisés um egípcio.
Da nova teoria do inconsciente nasceria um segundo grande livro, publicado em novembro de 1899, “A Interpretação dos Sonhos” (Die Traumdeutung), no qual é relatado o sonho da “Injeção de Irmã”, ocorrido quando Freud estava em Bellevue, em julho de 1895, em um pequeno castelo na floresta vienense: “Você acredita, (escreveu a Fliess no dia 12 de julho de 1900), que haverá um dia nesta casa uma placa de mármore com esta inscrição: Foi nesta casa que, em 24 de julho de 1895, o ministério do sonho foi revelado ao doutor Sigmund Freud? Até agora, tenho pouca esperança.” O postulado inicial introduz uma ruptura radical com todos os discursos anteriores. O absurdo, a incongruência dos sonhos não é um acidente de ordem mecânica; o sonho tem um sentido, esse sentido está escondido e não decorre das figuras utilizadas pelo sonho, mas de um conjunto de elementos pertencentes ao próprio sonhador, fazendo com que a descoberta do sentido oculto dependa das “associações” produzidas pelo sujeito. Exclui-se, portanto, que esse sentido possa ser determinado sem a colaboração do sonhador.
Aquilo com que estamos lidando é um texto; sem dúvida, o sonho é constituído principalmente de imagens, mas o acesso a elas só pode ser obtido pela narrativa do sonhador, que constitui seu “conteúdo manifesto”, que é preciso decifrar, como Champollion fez com os hieróglifos egípcios, para descobrir seu “conteúdo latente”. O sonho é constituído como os “restos diurnos”, aos quais são transferidos os investimentos afetados pelas representações de desejo. O sonho, ao mesmo tempo em que protege o sono, assegura, de uma forma camuflada, uma certa “realização de desejo”. A elaboração do sonho é feita por técnicas especiais, estranhas ao pensamento consciente, a condensação (um mesmo elemento representava vários pensamentos do sonho) e o deslocamento (um elemento do sonho é colocado no lugar de um pensamento latente).
Resultam dessa concepção do sonho uma estrutura particular do aparelho psíquico, que foi objeto do sétimo e último capítulo. Mais do que a divisão em três instâncias, consciente, pré-consciente e inconsciente, que especifica o que se chama de primeira tópica, convém conservar a idéia de uma divisão do psiquismo em dois tipos de instâncias, obedecendo a leis diferentes e separadas por uma fronteira que só pode ser ultrapassada em determinadas condições, consciente-pré-consciente, por um lado, inconsciente, por outro. Esse corte é radical e irredutível, nunca poderá haver “síntese”, mas apenas “tendência à síntese”. O sentimento próprio ao eu da unidade que constitui nosso mental não é mais do que uma ilusão. Um aparelho desse tipo torna problemática a apreensão da realidade, que deve ser constituída pelo sujeito. A posição de Freud, aqui, é a mesma expressa no “Projeto”: “O inconsciente é o próprio psíquico e sua realidade essencial. Sua natureza íntima nos é tão desconhecida como a realidade do mundo exterior, e a consciência nos ensina sobre ela de uma maneira tão incompleta como nossos órgãos dos sentidos sobre o mundo exterior”.
Para Freud, o sonho se encontra em uma espécie de encruzilhada entre o normal e o patológico, e as conclusões concernentes ao sonho serão consideradas por ele como válidas para explicar os estados neuróticos.
“A psicopatologia da vida cotidiana” (Zur Psychopathologie dês Alltagslebens) é publicado no ano seguinte, em 1901. Ela começa, por exemplo, com um esquecimento de nome, o de Signorelli, análise já publicada por Freud em 1898; o esquecimento associa, em sua determinação, tanto com motivos sexuais como a idéia de morte. A obra reúne toda uma série de pequenos acidentes, aos quais quase não se dá, via de regra, nenhuma atenção, como os esquecimentos de palavras, as “lembranças encobridoras”, os lapsos da palavra ou escrita, os erros de leitura e escrita, os equívocos, os atos falhos, etc.
Esses fatos podem ser considerados como manifestações do inconsciente, nas seguintes três condições: 1.não deve ultrapassar um certo limite fixado por nosso juízo, isto é, aquilo que chamamos de “os limites do ato normal”; 2.devem ter caráter de um distúrbio momentâneo; 3.não podem ser caracterizados assim a não ser que os motivos nos escapem e que fiquemos reduzidos a invocar o “acaso” ou a “falta de atenção”.
“Ao colocar os atos falhos na mesma categoria das manifestações das psiconeuroses, damos um sentido e uma base a duas afirmativas que ouve repetir com freqüência, a saber, que entre o estado nervoso normal e o funcionamento nervoso anormal, não existe um limite claro e marcado (...). Todos os fenômenos em questão, sem nenhuma exceção, permitem que se chegue aos materiais psíquicos reprimidos incompletamente e que, embora recalcados pela consciência, não perderam toda a possibilidade de se manifestar e se exprimir”.
O terceiro texto, “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (Der Witz und seine Beziehung zum Unbewuften), é publicado em 1905. Diante desse material logo e difícil, alguns se perguntaram por que Freud tinha julgado necessário acumular uma quantidade tão grande de exemplos, com uma classificação complicada. Sem dúvida, porque suas teses eram difíceis de pôr em evidência. Eis as principais. “O espírito reside apenas na expressão verbal”. Os mecanismos são os mesmos do sonho, a condensação e o deslocamento. O prazer que o espírito engendra está ligado à técnica e à tendência satisfeita, hostil ou obscena. Porém, um terceiro ocupa sobretudo nele um papel principal, e é isso o que o distingue do cômico. “O espírito em geral precisa da intervenção de três personagens: aquele que faz a palavra, aquele que se diverte com a verve hostil ou sexual e, enfim, aquele no qual é realizada a intenção do espírito, que é a de produzir prazer”. Finalmente: “Só é espirituoso aquilo que é aceito como tal”. Compreende-se então a dificuldade para traduzir a palavra alemã “Witz”, que não tem equivalente em francês, mas também a dificuldade de seu manejo em alemão, por aquilo que acaba de ser lembrado e pela diversidade dos exemplos utilizados, histórias engraçadas, chistes, trocadilhos, etc. A especificidade do “Witz” explica a atenção que Freud tem em distingui-lo do cômico, distinção assim resumida: “O espírito é, por assim dizer, para o cômico, a contribuição que lhe vem do domínio do inconsciente”.
No mesmo ano, surgem os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie), onde é afirmada e ilustrada a importância da sexualidade infantil e proposto um esquema da evolução da libido, por suas fases caracterizadas pela sucessiva dominância das zonas erógenas bucal, anal e genital. Nesse texto a criança, em relação à sexualidade, é definida como um “perverso polimorfo”, e a neurose é situada como “o negativo da perversão”.
Mais ou menos entre 1905 e 1918, irão se suceder um grande número de textos referentes à técnica e, para ilustra-la, apresentações de casos clínicos. Entre estes últimos estão as “Cinco psicanálises”:
Em 1905, “Fragmento da análise de um caso de histeria”: observação de uma paciente chamada Dora, centrada em dois sonhos principais, cujo trabalho de interpretação ocupa sua maior parte.
Em 1909, “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos” (o pequeno Hans): Freud verifica a exatidão das “reconstituições” efetuadas no adulto.
Também em 1909, “Notas sobre um caso de neurose obsessiva” (O Homem dos Ratos): a análise é dominada por um voto inconsciente de morte, e Freud se espanta ao verificar, “ainda mais” em um obsessivo, as descobertas feitas no estudo da histeria.
Em 1911, “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia” (Dementia paranoides) (o presidente Schreber): a particularidade dessa análise se prende ao fato de que Freud nunca encontrou o paciente, contentando-se em trabalhar com as “Memórias” nas quais este descrevera sua doença, dando a elas um interesse científico.
Finalmente, em 1918, “História de uma neurose infantil” (O Homem dos Lobos): a observação foi para Freud de particular importância. Ela fornecia a prova da existência, na criança, de uma neurose perfeitamente constituída, seja ela aparente ou não, nada mais sendo a do adulto do que uma exteriorização e repetição da neurose infantil; ela demonstrou a importância dos motivos libidinais e a ausência de aspirações culturais, ao contrário de C. Jung; ela forneceu uma exata ilustração da constituição do fantasma e do lugar da cena primitiva.
Em 1902, com Alfred Adler, Wilhelm Stekel, Max Kahane (1866-1923) e Rudolf Reitler (1865-1917), fundou a Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, primeiro círculo da história do freudismo. Durante os anos que se seguiram, muitas personalidades do mundo vienense se juntaram ao grupo: Paul Federn, Otto Rank, Fritz Wittels, Isidor Sadger. Foi durante essas reuniões que se elaborou a idéia de uma possível aplicação da psicanálise a todas as áreas do saber: literatura, antropologia, história, etc. O próprio Freud defendeu a noção de psicanálise aplicada, publicando uma fantasia literária: “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907)”.
Em 1907 e 1908, o círculo dos primeiros discípulos freudianos se ampliou ainda mais, com a adesão à psicanálise de Hanns Sachs, Sandor Ferenczi, Karl Abraham, Ernest Jones, Abraham Arden Brill e Max Eitingon.
Durante o primeiro quarto do século, a doutrina freudiana se implantou em vários países: Grã-Bretanha, Hungria, Alemanha, costa leste dos Estados Unidos. Na Suíça produziu-se um acontecimento maior na história do movimento psicanalítico : Eugen Bleuler, médico-chefe da clínica do Hospital Burghölzli de Zurique, começou a aplicar o método psicanalítico ao tratamento das psicoses, inventando ao mesmo tempo a noção de esquizofrenia. Uma nova “terra prometida” se abriu assim à doutrina freudiana: ela podia a partir de então investir o saber psiquiátrico e tentar dar uma solução para o enigma da loucura humana.
No dia 3 de março de 1907, Carl Gustav Jung, aluno e assistente de Bleuler, foi a Viena para conhecer Freud. Depois de várias horas de conversa, ficou encantado com esse novo mestre. Seria o primeiro discípulo não-judeu de Freud.
Em 1909, a convite de Grandville Stanley Hall, Freud foi, em companhia de Jung e de Ferenczi, à Clark University de Worcester, em Massachusetts, para dar cinco conferências, que seriam reunidas sob o título de “Cinco lições de psicanálise”. Apesar de um encontro produtivo com James Jackson Putnam e de um sucesso considerável, Freud não gostou do continente americano. Durante toda a vida, desconfiaria do espírito pragmático e puritado desse país que acolhia suas idéias com entusiasmo ingênuo e desconcertante.
Temendo o anti-semitismo e que a psicanálise fosse assimilada a uma “ciência-judaica”, Freud decidiu “desjudalizá-la”, pondo Jung à frente, como presidente, do movimento. Depois de um primeiro congresso, que reuniu em Salzburgo em 1908 todas as sociedades locais, criou com Ferenczi, em Nuremberg, em 1910, uma associação internacional, a Sociedade Psicanalítica de Viena “Internationale Psychoanalytische Vereinigung” (IPV). Em 1933, a sigla alemã seria abandonada. A IPV se tornaria então a Associação Internacional de Psicanálise “International Psychoanalytical Association” (IPA).
Entre 1909 e 1913, Freud publicou mais duas obras: “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância” (1910) e “Totem e tabu” (1912-1913). A partir de 1910, a expansão do movimento se traduziu por dissidências, tendo como motivo simultaneamente quer elas pessoais e questões teóricas e técnicas. Às rivalidades narcísicas se acrescentaram críticas sobre a duração dos tratamentos, a questão da transferência e da contratransferência, o lugar da sexualidade e a definição da noção de inconsciente.
Inicialmente, está a questão do pai, tratada com uma excepcional amplidão, em “Totem e tabu”, e retomada a partir de um exemplo particular, em “Moisés e o monoteísmo” (1932-1938). Ela constitui um dos pontos mais difíceis da doutrina de Freud, devido ao polimorfismo da função paterna em sua obra. Mais tarde, foi o conceito de narcisismo que foi objeto do grande artigo em 1914, “Sobre o narcisismo: uma introdução”, necessária para levantar as dificuldades encontradas na análise de Schreber e tentar explicar as psicoses, mas também para esboçar uma teoria do eu. “O estranho” (Das Unheimliche), publicado em 1919, refere-se especialmente à problemática da castração. Porém, a maior alteração decorreu da conceitualização do automatismo de repetição e do instinto de morte, que são o assunto de “Além do princípio de prazer” (Jenseits dês Lustprinzips, 1920). A teoria do eu e da identificação serão os temas centrais de “Psicologia de grupo e análise do ego” (Massenpsychologie umd Ich-Analyse, 1921).
Finalmente, “A Negativa” (Die Verneinung, 1925) irá sublinhar a primazia da palavra, na experiência psicanalítica, ao mesmo tempo em que define um modo particular de presentificação do inconsciente.
Freud nunca deixou de tentar reunir, em uma visão que chama de metapsicologia, as descobertas que sua técnica permitiu e as elaborações que nunca deixaram de acompanhar sua prática, mesmo afirmando que esse esforço não deveria ser interpretado como uma tentativa de constituição de uma nova “visão do mundo” (Weltanschauung).
Certos remanejamentos valem como correções de posições anteriores. Este é o caso da teoria do fantasma que, por volta de 1910, irá substituir a primeira teoria traumática da sedução precoce (Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, 1907; Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, 1911; “O Homem dos Lobos”, 1918).
Esse também foi o caso do masoquismo, considerado, num primeiro momento, como uma inversão do sadismo. As teses de “Além do princípio do prazer” permitirão a concepção de um masoquismo primário, que Freud será levado a tornar equivalente, em “O problema econômico do masoquismo” (1925), ao instinto de morte e ao sentimento de culpa irredutível e inexplicado, revelado por certas análises.
De forma sem dúvida arbitrária, pode-se classificar, nos remanejamentos tornados necessários devido ao desgaste dos termos (embora muitos outros motivos o justifiquem), a introdução da segunda tópica, constituída pela três instâncias, isso, eu e supereu (O ego e o id [Das Ich und das Es], 1923), as novas considerações sobre a angústia, como sinal de perigo (Inibições, sintomas e ansiedade/angústia [Hemmung, Symptom und Angst], 1926) e, finalmente, o último texto, inacabado, “A divisão do ego no processo de defesa (Die Ichspaltung im Abwehvorgang, 1938), no qual Freud anuncia que, apesar das aparências, o que irá dizer, referindo-se à observação do artigo de 1927, sobre o fetichismo, também era então totalmente novo. E, de fato, as formulações nele propostas apresentem-se como um esboço de uma remodelagem de toda a economia de sua doutrina.”
Na obra de Freud, dois textos possuem, aparentemente, um estatuto um tanto especial. São eles “O futuro de uma ilusão” (Die Zukunft einer Illusion), publicado em 1927, que examina a questão da religião, e “O mal-estar na civilização” (Das Unbehagen in der Kultur, 1929), dedicado ao problema da felicidade, considerada pro Freud inatingível, e às exigências exorbitantes da organização social ao sujeito humano.
De fato, trata-se da consideração de fenômenos sociais, à luz da experiência psicanalítica. Na realidade, como sempre acontece com Freud, o ângulo escolhido para tratar de qualquer questão serve-lhe, antes de tudo, para dar esclarecimentos ou indicações sobre aspectos importantes da experiência. Isso ocorre, em “O Futuro”, com a questão do pai e a de Deus, como seu corolário; em “O mal-estar”, a maldade fundamental do ser humano e a constatação paradoxal de que quanto mais o sujeito satisfaz os imperativos morais, os do supereu, mais este se mostra exigente.
Em 1911, Adler e Stekel se separaram do grupo freudiano. Dois anos depois, Jung e Freud romperam todas as suas relações. Não suportando desvios em relação à sua doutrina, Freud publicou, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, um verdadeiro panfleto, “A história do movimento psicanalítico”, no qual denunciou as traições de Jung e Adler. Depois, criou um Comitê Secreto, composto de seus melhores paladinos, aos quais distribuiu um anel de fidelidade.
Longe de evitar as dissidências, essa iniciativa levou a novas querelas. Apoiados por Jones, os berlinenses (Abraham e Eitingon) preconizava a ortodoxia institucional, enquanto os austro-húngaros (Rank e Ferenczi) se interessavam mais pelas inovações técnicas. Uma nova dissidência marcou ainda a história desse primeiro freudismo: a de Wilhelm Reich.
Por volta de 1930, o fenômeno da dissidência deu lugar às cisões, característica da transformação da psicanálise em um movimento de massa. A partir daí eram os grupos que se enfrentavam, não mais os discípulos ou os pioneiros em rivalidade com o mestre. Isolado em Viena, mas célebre no mundo inteiro, Freud prosseguiu sua obra, sem conseguir controlar a política de seu movimento. Entre 1919 e 1933, a IPA se transformou em uma verdadeira máquina burocrática, com a responsabilidade de resolver todos os problemas técnicos relativos à formação dos psicanalistas.
No fim da Primeira Guerra Mundial, a discussão sobre o caráter traumático das afecções psíquicas foi relançada, com o aparecimento das neuroses de guerra. Freud foi então confrontado com seu velho rival Julius Wagner Jauregg, acusado de ter submetido soldados julgados simuladores a inúteis tratamentos elétricos. Nesse debate, Freud interveio de maneira magistral para demonstrar a superioridade da psicanálise sobre todos os outros métodos.
Com o desmoronamento do império austro-húngaro, Berlim se tornou a capital do freudismo, como provou a criação do Berliner Psychoanalytisches Institut (BPI), e as numerosas atividades do instituto de Frankfurt em torno de Otto Fenichel e da “esquerda freudiana”. Enquanto os americanos afluíam a Viena para se formar no divã do mestre, este analisava a própria filha, Anna Freud. Esta não tardaria a tornar-se chefe de escola e opor-se a Melanie Klein, sua principal rival no campo da psicanálise de crianças. Nesse aspecto, a oposição entre a escola vienense, que se desenvolveu na IPA a partir de 1924 e que girava em torno da questão da sexualidade feminina, mostrou o lugar cada vez mais importante das mulheres no movimento psicanalítico. No centro dessa polêmica, Freud manteve sua teoria da libido única e do falocentrismo, sem com isso mostrar-se misógino. Ligado em sua vida particular a uma concepção burguesa da família patriarcal, adotava todavia, em suas amizades com mulheres intelectuais, uma atitude perfeitamente cortês, moderna e igualitária. Por sua doutrina e por sua condição de terapeuta, desempenhou um papel na emancipação feminina.
Nos anos 1920, Freud publicou três obras fundamentais, através das quais definiu sua segunda tópica e remanejou inteiramente sua teoria do inconsciente e do dualismo pulsional: “Mais-além do princípio do prazer” (1920), “`Psicologia das massas e análise do eu” (1921), “O eu e o isso” (1923). Esse movimento de reformulação conceitual já começara em 1914, quando da publicação de um artigo dedicado à questão do narcisismo. Confirmou-se, em 1915, com a elaboração de uma metapsicologia e a publicação de um ensaio sobre a guerra e a morte, no qual Freud sublinhava a necessidade para o sujeito de “organizar-se em vista da morte, a fim de melhor suportar a vida”. Dessa reformulação, centrada na dialética da vida e da morte e em uma acentuação da oposição entre o eu e o isso, nasceriam as diferentes correntes do freudismo moderno: kleinismo, Ego Psychology, Self Psychology, lacanismo, annafreudismo, Independentes.
Para postular a existência de uma pulsão de morte, Freud revalorizou duas figuras da mitologia grega: Eros e Tânatos. Essa revisão da doutrina original se produziu em um momento em que a sociedade vienense, já preocupada com a sua própria morte desde o fim do século, se confrontava com a negação absoluta de sua identidade: a Áustria dessa época, como enfatizou Stefan Zweig, era, no mapa da Europa, apenas “uma luz crepuscular”, uma “sombra cinzenta, difusa e sem vida, da antiga monarquia imperial”.
Em fevereiro de 1923, Freud descobriu, do lado direito de seu palato, um pequeno tumor, que devia ser logo extirpado. Em um primeiro tempo, Felix Deutsch, seu médico, lhe ocultou a natureza maligna desse tumor. Freud se indispôs com ele. Seis meses depois, Hans Pichler, cirurgião vienense, procedeu a uma intervenção radical: a ablação dos maxilares e da parte direita do palato. Trinta e uma operções seriam feitas posteriormente, sob a supervisão de Max Schur. Freud foi obrigado a suportar uma prótese, que ele chamava de “monstro”. “Com seu palato artificial, escreveu Zweig, ele tinha visivelmente dificuldade para falar [...]. Mas não abandonava seus interlocutores. Sua alma de aço tinha a ambição particular de provar a seus amigos que sua vontade era mais forte que os tormentos mesquinhos que o seu corpo lhe infligia [...]. Era um combate terrível, e cada vez mais sublime à medida que se estendia. Cada vez que eu o via, a morte jogava mais distintamente sua sombra sobre seu rosto [...]. Um dia, quando de uma de minhas últimas visitas, levei comigo Salvador Dali, a meu ver o pintor mais talentoso da jovem geração, que devotava a Freud uma veneração extraordinária. Enquanto eu falava, ele desenhou um esboço. Nunca tive coragem de mostrá-lo a Freud, pois Dali, em sua clarividência, já representara o trabalho da morte.”
A doença não impedia Freud de prosseguir com suas atividades, mas o mantinha afastado das questões do movimento psicanalítico, e foi Jones quem presidiu os destinos da IPA a partir de 1934, data na qual Max Eitingon foi obrigado a deixar a Alemanha.
Apaixonado por telepatia, Freud não hesitou em se dedicar, com Ferenczi, entre 1921 e 1933, a experiências ditas “ocultas”, que iam contra a política jonesiana, que visava dar à psicanálise uma base racional, científica e médica. Em 1926, depois de um processo intentado contra Theodor Reik, tomou vigorosamente a defesa dos psicanalistas não-médicos, publicando “A questão da análise leiga”. No ano seguinte, deflagrou com seu amigo Oskar Pfister uma polêmica ao publicar “O futuro de uma ilusão”, obra na qual comparava a religião a uma neurose. Enfim, em 1930, com “O mal-estar na cultura”, questionava a capacidade das sociedades democráticas modernas de dominar as pulsões destrutivas que levam os homens à sua perda. Dois anos depois, em um intercâmbio com Albert Einstein (1879-1955), enfatizou que o desenvolvimento da cultura era sempre uma maneira de trabalhar contra a guerra. Entre 1929 e 1939, manteve uma crônica de seus encontros (Kürzeste Chronik, Crônica brevíssima), que seria publicada por Michael Molnar em Londres, em 1992. Cada vez mais pessimista quanto ao futuro da humanidade, Freud não tinha nenhuma ilusão sobre a maneira como o nazismo tratava os judeus e a psicanálise: “Como homem verdadeiramente humano, escreveu Zweig, ele estava profundamente abalado, mas o pensador não se surpreendia absolutamente com a espantosa irrupção da bestialidade.” Entretanto, no dia seguinte ao incêndio do Reichstag, decidiu com Eitingon manter a existência do BPI. Embora não aprovasse a política de “salvamento” da psicanálise, preconizada por Jones, cometeu o erro de privilegiar a luta contra os dissidentes (Reich e os adlerianos), ao invés de recusar qualquer compromisso com Matthias Heinrich Göring, o que teria levado à suspensão de todas as atividades psicanalíticas, logo que Hitler chegou ao poder.
Mas em março de 1938, no momento da invasão da Áustria pelas tropas alemãs, Richard Sterba agiu em sentido contrário, decidindo recusar a política de Jones e não criar em Viena um instituto “arianizado” como o de Göring, em Berlim. Tomou-se então a decisão de dissolver a Wiener Psychoanalytische Vereinigung (WPV) e transportá-la “para onde Freud fosse morar”. Graças à intervenção do diplomata americano William Bullitt (1891-1967) e a um resgate pago por Marie Bonaparte, Freud pôde deixar Viena com sua família. No momento de partir, foi obrigado a assinar uma declaração na qual afirmava que nem ele nem seus próximos haviam sido importunados pelos funcionários do Partido Nacional-Socialista. Em Londres, instalou-se em uma bela casa em Maresfield Gardes 20, futuro Freud Museum. Ali, redigiu sua última obra, “Moisés e o monoteísmo”. Nunca saberia do destino dado pelos nazistas às suas quatro irmãs, exterminadas em campos de concentração.
No começo do mês de setembro de 1939, escutava o rádio todos os dias. Aos seus familiares, que lhe perguntavam se aquela seria a última guerra, respondia: “Será minha última guerra.” Iniciou então a leitura de “Peau de chagrin” de Honoré de Balzac (1799-1850): “É exatamente disso que preciso, disse, este livro fala de definhamento e de morte por inanição.” Em 21 de setembro, pegou a mão de Max Schur e lembrou o primeiro encontro dos dois: “Você prometeu não me abandonar quando chegasse a hora. Agora é só uma tortura sem sentido.” Depois, acrescentou: “Fale com Anna; se ela achar que está bem, vamos acabar com isso.” Consultada, Anna quis adiar o instante fatal, mas Schur insistiu e ela aceitou a decisão. Por três vezes, ela deu a Freud uma injeção de três centigramas de morfina. Em 23 de setembro, às três horas da manhã, depois de dois dias de coma, Freud morreu tranqüilamente: “Foi a sublime conclusão de uma vida sublime, escreveu Zweig, uma morte memorável em meio à hecatombe, daquela época mortífera. E quando nós, seus amigos, enterramos seu caixão, sabíamos que confiávamos à terra inglesa o que a nossa pátria tinha de melhor.” As cinzas de Freud repousam no crematório de Golders Green.
Centenas de obras foram escritas no mundo sobre Freud e algumas dezenas de biografias lhe foram consagradas, de Fritz Wittels a Peter Gay, passando por Lou Andréas Salomé, Thomas Mann, Siegfried Bernfld, Ernest Jones, Ola Andersson, Henri F. Ellenberger, Max Schur, Kurt Eissler, Didier Anzieu, Carl Schorske. Sua obra, traduzida em cerca de 30 línguas, é composta de 24 livros propriamente ditos (dos quais dois em colaboração, um com Josef Breuer, outro com William Bullitt) e de 123 artigos. Freud também escreveu prefácios, necrológios, intervenções diversas em congressos e contribuições para enciclopédias.
Acredita-se geralmente que a psicanálise renovou o interesse tradicionalmente atribuído aos eventos da existência para compreender ou interpretar o comportamento e as obras dos homens excepcionais. Isso não é verdade, e Freud, sobre isso, é categórico: “Quem quiser se tornar biógrafo deve se comprometer com a mentira, a dissimulação, a hipocrisia e até mesmo com a dissimulação de sua incompreensão, pois a verdade biográfica não é acessível e, se o fosse, não serviria de nada” (carta a A. Zweig, de 31 de maio de 1936).
Kurt Eissler avaliou em 15 mil o número de cartas escritas por Freud e em cerca de 10 mil as que estão depositadas na Biblioteca do Congresso, em Washington ou seja uma perda de aproximadamente cinco mil peças. O historiador alemão Gerhard Fichtner propôs outras cifras. Segundo ele, Freud teria escrito cerca de 20 mil cartas. Dez mil teriam sido destruídas ou perdidas, cinco mil estão conservadas e cinco mil ainda poderiam ser encontradas no século XXI, ou seja dez mil no total. Observe-se que Freud destruiu ou perdeu uma parte das cartas que seus correspondentes lhe enviaram, particularmente as de Wilhelm Fliess.
Três mil e duzentas cartas de Freud foram publicadas, entre as quais as dirigidas a Eduard Silberstein, Wilhelm Fliess, Lou Andréas-Salomé, Ernest Jones, Carl Gustav Jung, Sandor Ferenczi, Romain Rolland, Arnold Zweig, Stefan Zweig, Edoardo Weiss, Oska Pfister (expurgadas), Karl Abraham (expurgadas).
Duas edições completas da obra de Freud em alemão foram realizadas: uma durante sua vida, os “Gesammelte Schriften”, a outra depois em sua morte, as “Gesammelte Werke (GW)”, publicadas primeiro em Londres, depois em Frankfurt. As GW se tornaram, universalmente, a edição de referência. Foram completadas por dois outros volumes, um “Índice” e um volume de suplementos (Nachtragsband), realizado por Ângela Richards e Ilse Grubrich-Simitis. A estes se acrescentam uma edição dita de estudos, a Studienausgabe, elaborada por Alexander Mitscherlich e composta de um seleção de textos. Apesar de todos os esforços de Mitscerlich e de Ilse Grubrich-Simitis, nenhuma edição dita crítica das GW (notas, comentários, apresentações, etc.) foi publicada na Alemanha.
A edição inglesa, realizada por James Strachey sob o título “Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (SE)”, é a única edição crítica da obra de Freud. É por isso que, mais ainda do que as “Gesammelte Werke”, é uma obra de referência no mundo inteiro.
Em razão da oposição dos herdeiros nenhum dos textos de Freud anterior ao ano de 1886 foi integrado às diversas obras completas. Ora, durante esse período, dito pré-psicanalítico, que se estendeu de 1877 a 1886, Freud publicou 21 artigos sobre temas diversos: neurologia, medicina, histologia, cocaína, etc. Esses artigos foram recenseados em 1973 por Roger Dufresne.
Em 1967, Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis isolaram cerca de 90 conceitos estritamente freudianos no interior de um vocabulário psicanalítico composto de 430 termos. Esses conceitos foram objeto de múltiplas revisões, efetuadas pelos grandes teóricos e clínicos do freudismo: Sandor Ferenczi, Melanie Klein, Jacques Lacan, Donald Woods Winnicott, Heinz Kohut, etc.
Observe-se que Freud publicou cinco grandes casos clínicos, que foram comentados ou revistos por seus sucessores: Ida Bauer (Dora), Herbert Graf (O Pequeno Hans), Ernst Lanzer (O Homem dos Ratos), Daniel Paul Schreber, Serguei Constantinovitch Pankejeff (O Homem dos Lobos). Segundo o quadro das filiações estabelecido por Ernst Falzeder em 1994, Freud formou na análise didática mais de 60 práticos, na maioria alemães, autríacos, ingleses, húngaros, neerlandeses, americanos, suíços, aos quais se acrescentam os pacientes cuja identidade se ignora.
Foi talvez Stefan Zweig, em 1942, quem redigiu um dos relatos mais realistas de Freud: “Não se podia imaginar um indivíduo de espírito mais intrépido. Freud ousava a cada instante expressar o que pensava, mesmo quando sabia que inquietava e perturbava com suas declarações claras e inexoráveis; nunca procurava tornar sua posição menos difícil através da menor concessão, mesmo de pura forma. Estou convencido de que Freud poderia ter exposto, sem encontrar resistência por parte da universidade, quatro quintos de suas teorias, se estivesse disposto a vesti-las prudentemente, a dizer “erótico” em vez de “sexualidade”, “Eros” em vez de “libido” e a não ir sempre até o fundo das coisas, mas limitar-se a sugeri-las. Mas, desde que se tratasse de seu ensino e da verdade, ficava intransigente; quanto mais firme era a resistência, tanto mais ele se afirmava em sua resolução. Quando procuro um símbolo da coragem moral- o único heroísmo no mundo que não exige vítimas – vejo sempre diante de mim o belo rosto de Freud, com sua clareza viril, com seus olhos sombrios de olhar reto e viril”.
Circuncidado ao nascer, o jovem Sigmund recebeu uma educação judaica não tradicionalista e aberta à filosofia do Iluminismo. Era adorado pela mãe, que o chamava “meu Sigi de ouro”, e amado pelo pai, que lhe transmitiu os valores do judaísmo clássico. Tinha uma afeição especial por sua governanta tcheca e católica, Monika Zajic, apelidada Nannie, que o levava para visitar igrejas, falava-lhe do “bom Deus” e lhe revelou outro mundo além do judaísmo e da judeidade. Talvez ela também tenha desempenhado um papel em sua aprendizagem da sexualidade.
Freud nasceu em uma família de abastados comerciantes judeus. Sempre se destaca a complexidade das relações intrafamiliares. Seu pai, Jakob Freud, que exercia o ofício de comerciante de lã e têxteis, casou-se, pela primeira vez, aos 17 anos e teve dois filhos (Emmanuel e Philippe). Viúvo, casa-se novamente com Amália Nathanson, de 20 anos, idade do segundo filho de Jakob. Freud será o mais velho dos oito filhos do segundo casamento de seu pai, e seu companheiro preferido de brinquedos foi seu sobrinho, que tinha um ano a mais do que ele. Do casamento de Jacob e Amália nasceram os seguintes irmãos de Freud: Julius, Anna, Débora (Rosa), Marie (Mitzi), Adolfine (Dolfi), Pauline (Paula) e Alexander.
Quando tinha 3 anos, em outubro de 1859, Jacob e a família deixaram Freiberg, onde seus negócios não prosperavam em virtude da introdução do maquinismo e do desenvolvimento da industrialização o que provocou uma queda dos rendimentos familiares . Instalou-se então em Leipzig, esperando encontrar nessa cidade melhores condições para o comércio de têxteis. Para Freud, essa partida permanecerá sempre dolorosa. Merece ser lembrado um ponto que ele próprio menciona: o amor sem desfalecimentos que sua mãe sempre lhe votou, ao qual atribui a confiança e a segurança que demonstrou em todas as circunstâncias.
Por sua vez, Emanuel e Philipp emigraram para Manchester. Um ano depois, não tendo conseguido modificar sua má situação econômica, Jacob decidiu estabelecer-se em Leopoldstrasse, o bairro judeu de Viena. Entre 1865 e 1873, o jovem Sigmund freqüentou o Realgymnasium e depois o Obergymnasium, onde ficou conhecendo Eduard Silberstein, com quem manteve sua primeira grande correspondência intelectual, notadamente a respeito de Franz Brentano. Nessa época, apaixonou-se por Gisela Fluss, filha de um negociante amigo do seu pai. Mais tarde, fez amizade com Heinrich Braun (1854-1927), que despertaria seu interesse pela política e depois se orientaria para o socialismo.
Foi um aluno muito bom em seus estudos secundários, e foi sem uma vocação especial que no outono de 1873, Freud começou seu estudo de medicina. Devem se destacar duas coisas, uma ambição precocemente formulada e reconhecida e “o desejo de contribuir com alguma coisa, durante sua vida, para o conhecimento da humanidade” (“Psicologia dos Estudantes”,1914). Sua curiosidade, “que visava mais às questões humanas do que às coisas da natureza” (“Um Estudo Autobiográfico” [Selbstdarstellung],1925) leva-o a acompanhar, ao mesmo tempo, durante três anos, as conferências de F. Brentano, várias delas dedicadas a Aristóteles. Em 1880, publicou a tradução de vários textos de J.S.Mill: “Sobre a emancipação da mulher”, “Platão”, “A questão operária”, “O socialismo”.
Em setembro de 1886, depois de um noivado de vários anos, desposa Martha Bernays, com quem terá cinco filhos. Em 1883, é nomeado docente-privado (que equivale, na França, ao título de mestre conferencista) e professor honorário em 1902. Apesar de todos os tipos de hostilidade e dificuldades, Freud sempre se recusará a abandonar Viena. Foi somente pela pressão de seus alunos e amigos e depois do “Anschluss” de março de 1938 que irá finalmente se decidir, dois meses mais tarde, a partir para Londres.
Apaixonou-se pela ciência positiva, e principalmente pela biologia darwiniana (que serviria de modelo para todos os seus trabalhos). Em 1874, pensou em ir a Berlim, para freqüentar os cursos de Hermann von Helmholtz. Um ano depois, com o estímulo de Carl Claus, seu professor de zoologia, obteve uma bolsa de estudos que lhe permitiu ir a Trieste estudar a vida das enguias (machos) de rio. Sua primeira publicação data de 1877: “Sobre a Origem das Raízes Nervosas Posteriores da Medula Espinhal dos Amoceta” (Petromyzon planeli), enquanto a última, referente às Paralisias cerebrais infantis, de 1897, esse texto mostra que Freud trabalhava na elaboração de uma teoria do funcionamento específico das células nervosas (os futuros neurônios), como se veria em seu “Projeto para uma psicologia científica” de 1895. Durante esses 20 anos, pode-se reunir 40 artigos (fisiologia e anátomo-histologia do sistema nervoso).
Freud entrou no Instituto de Fisiologia, dirigido por E.Brücke, após três anos de estudos médicos, em 1876. Depois dessa experiência, Freud passou do instinto de zoologia para o de fisiologia, tornando-se aluno de Ernst Wilhelm von Brucke, eminente representante da escola antivitalista fundada por Helmholtz. Foi nesse instituto, onde ficou seis anos, que fez amizade com Josef Breuer. Entre 1879 e 1880, forçado a uma licença para cumprir o serviço militar, enganava o tédio traduzindo quatro ensaios de John Stuart Mill (1806-1873), sob a direção de Theodor Gomperz (1832-1912), escritor e helenista austríaco, responsável pela publicação alemã das obras completas desse filósofo inglês, teórico do liberalismo político.
O trabalho de Freud sobre a afasia (Uma concepção da afasia, estudo crítico[Zur Auffassung der Aphasien], 1891) permanecerá na sombra, embora ofereça a mais aprofundada e notável elaboração da afasiologia da época. Suas esperanças de notoriedade tampouco foram satisfeitas por seus trabalhos sobre a cocaína, publicados de 1884 a 1887. Havia descoberto as propriedades analgésicas dessa substância, negligenciando as propriedades anestésicas, que seriam utilizadas com sucesso por K.Koller. A lembrança desse fracasso vai ser um dos elementos que originaram a elaboração de um sonho de Freud, a “monografia botânica”.
Freud se encontrava, no início da década de 1880, na posição de pesquisador em neurofisiologia e de autor de trabalhos de valor, mas que não lhe permitia, por falta de assegurar a subsistência de uma família. Apesar de suas reticências, a única oferecida era abrir um consultório de neurologista na cidade, o que fez, de forma surpreendente, no domingo de Páscoa, 25 de abril de 1886.
Em 1882, depois de obter seu diploma, ficou noivo de Martha Bernays (Martha Freud), que se tornaria sua mulher. Por razões financeiras, renunciou então à carreira de pesquisador e decidiu tornar-se clínico. Nos três anos seguintes, trabalhou no Hospital Geral de Viena, primeiro no serviço de Hermann Nothnagel, depois no de Theodor Meynert. Ali, ficou conhecendo Nathan Weiss (1851-1883), e quando esse novo amigo se suicidou por enforcamento, Freud ficou transtornado. “Sua vida, escreveu a Martha, parece ter sido a de um personagem de romance, e sua morte uma catástrofe inevitável.”
Pensando em tornar-se célebre e libertar-se da pobreza para poder se casar, acreditava ter descoberto as virtudes da cocaína e administrou-a a seu amigo Ernst von Fleischl-Marxow, que sofria de uma doença incurável. Não percebia a dependência induzida pela droga e ignorava tudo sobre sua ação anestesiante, que seria descoberta por Carl Koller.
Em 1885, nomeado “Privatdozent” de neurologia, Freud obteve uma bolsa de estudos graças à qual pudera realizar um de seus sonhos, ir a Paris. Queria muito encontrar-se com Jean Martin Charcot, cujas experiências sobre a histeria o fascinavam. Foi assim que teve um encontro determinante, na Salpêtrière, com Charcot. Deve-se observar que Charcot não se mostrou interessado nem pelos cortes histológicos que Freud lhe levou, como prova de seus trabalhos, nem pelo relato do tratamento de Anna O., cujos elementos clínicos principais seu amigo J. Breuer lhe tinha comunicado, a partir de 1882. Charcot quase não se interessava pela terapêutica, preocupando-se em descrever e classificar os fenômenos para tentar explica-los de forma racional.
Essa primeira permanência na França marcou o início da grande aventura científica que o levaria à invenção da psicanálise. No Teatro Saint-Martin, Freud assistiu maravilhado à representação de uma peça de Victorien Sardou, interpretada por Sarah Bernhardt: “Nunca uma atriz me surpreendeu tanto; eu estava pronto a acreditar em tudo o que ela dizia.” Depois de Paris, foi a Berlim, onde fez os cursos do pediatra Adolf Baginsky.
De volta a Viena, instalou-se como médico particular, abrindo um consultório na Rathausstrasse. Freud também trabalhava, três tardes por semana, como neurologista na Clínica Steindlgasse, primeiro instituto público de pediatria, dirigido pelo professor Max Kassowitz (1842-1913). Em setembro de 1886, casou-se com Martha, e no dia 15 de outubro fez uma conferência sobre a histeria masculina na Sociedade dos Médicos, onde teve uma acolhida glacial, não em razão de suas teses (etiológicas), como diria depois, mas porque atribuía a Charcot a paternidade de noções que já eram conhecidas pelos médicos vienenses.
Em 1887, um mês depois do nascimento de sua filha Mathilde (Hollitscher), Freud ficou conhecendo Wilhelm Fliess, brilhante médico judeu berlinense, que fazia amplas pesquisas sobre a fisiologia e a bissexualidade. Era o início de uma longa amizade e de uma soberba correspondência íntima e científica. Apesar de várias tentativas, Fliess não conseguiria curar Freud de sua paixão pelo fumo: “Comecei a fumar aos 24 anos, escreveu em 1929, primeiro cigarros, e logo exclusivamente charutos [...]. Penso que devo ao charuto um grande aumento da minha capacidade de trabalho e um melhor autocontrole.”
Freud começa a utilizar os meios de que dispunha, a eletroterapia de W.H. Erb, a hipnose e a sugestão. As dificuldades encontradas levam-no a se ligar a A.A. Liébault e H. M. Bernheim, em Nancy, durante o verão de 1889. Traduz, aliás, as obras deste último para o alemão. Encontra nelas a confirmação das reservas e decepções que ele próprio sentia por tais métodos.
Em setembro de 1891, Freud mudou-se para um apartamento situado no número 19 da rua Berggasse. Ficou ali até seu exílio em 1938, cercado por seus seis filhos (Mathilde, Mrtin, Oliver, Ernst, Sophie Halberstadt, Anna) e de sua cunhada Minna Bernays. Como clínico, tratava essencialmente de mulheres da burguesia vienense, qualificadas como “doentes dos nervos” e sofrendo de distúrbios histéricos. Abandonando o niilismo terapêutico, tão comum nos meios médicos vienenses da época, procurou, ante de tudo, curar e tratar de suas pacientes, aliviando os seus sofrimentos psíquicos. Durante um ano, utilizou os métodos terapêuticos aceitos na época: massagens, hidroterapia, eletroterpia. Mas logo constatou que esses tratamentos não tinham nenhum efeito. Assim começou a utilizar a hipnose, inspirando-se nos métodos de sugestão de Hippolyte Bernheim, a quem fez uma visita por ocasião do primeiro congresso internacional de hipnotismo, que se realizou em Paris em 1889. Em 1891, publicou uma monografia, “Contribuição à concepção das afasias”, na qual se baseava nas teorias de Hughlings Jackson para propor uma abordagem funcional, e não mais apenas neurofisiológica, dos distúrbios de linguagem. A doutrina das “localizações cerebrais” era substituída pelo associacionismo, que abria caminho para a definição de um “aparelho psíquico” tal como se encontraria na metapsicologia: ele faz sua primeira formulação em 1896 e estabelece seus fundamentos no capítulo VII da “Interpretação dos Sonhos”.
Em 1890, consegue convencer seu amigo Breuer a escrever com ele uma obra sobre a histeria. Seu trabalho em comum dará lugar à publicação, em 1893, de “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar”, que irá abrir caminho para “Estudos sobre a histeria”; já se encontra nele a idéia freudiana de defesa, para proteger o sujeito de uma representação “insuportável” ou “incompatível”. No mesmo ano, em um texto intitulado “Algumas Considerações para um Estudo Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas”, publicado em francês em “Archives neurologiques”, Freud afirma que “a histeria se comporta, nessas paralisias e outras manifestações, como se a anatomia não existisse, ou como se ela não tomasse disso nenhum conhecimento”.
Os “Estudos sobre a histeria”, obra comum de Breuer e Freud, são publicados em junho de 1895. A obra comporta, além da Comunicação Preliminar, cinco observações de doentes: a primeira – de Anna O (Bertha Pappenheim) – é redigida por Breuer e é nela que se encontra a expressão tão feliz “Talking Cure”, proposta por Anna O; as quatro seguintes devem-se a Freud. A obra conclui com um texto teórico de Breuer e um outro sobre a psicoterapia da histeria, de Freud, onde se pode ver o início do que irá separar os dois autores no ano seguinte.
Em “L’ Hérédité et l’Étiologie dês Névroses”, publicado em francês, em 1896, na “Revue neurologique”, Freud de fato afirma: “Experiência de passividade sexual antes antes da puberdade; é essa, pois, a etiologia específica da histeria”. No artigo, é empregado pela primeira vez o termo “psicanálise”. Foi também durante esses anos que a reflexão de Freud sobre a súbita interrupção feita for Breuer no tratamento de Anna O levou-o a conceber a transferência.
Finalmente, deve-se assinalar a redação, em poucas semanas, no final de 1895, de “Projeto para uma Psicologia Científica” (Entwurf einer Psychologie), que Freud nunca irá publicar e que constitui, no começo, sua última tentativa de apoiar a psicologia sobre os dados mais recentes da neurofisiologia.
Trabalhando ao lado de Breuer, Freud abandonou progressivamente a hipnose pela catarse, inventou o método da associação livre, e enfim a psico-análise. Essa palavra foi empregada pela primeira vez em 1896, e sua invenção foi atribuída a Breuer. Em 1897, com um relatório favorável de Nothnagel e de Richard von Krafft-Ebing, o nome de Freud foi proposto para receber o prestigioso título de professor extraordinário. Sua nomeação foi ratificada pelo imperador Francisco-José no dia 5 de março de 1902.
Ao contrário de muitos intelectuais vienenses marcados pelo “ódio de si judeu”, Freud, judeu infiel e incrédulo, hostil a todos os rituais e à religião, nunca negaria sua judeidade. Como enfatizou Manès Sperber, ele continuaria sendo “um judeu consciente, que não dissimulava a ninguém sua origem, proclamando-a, ao contrário, com dignidade e freqüentemente com orgulho. Muitas vezes, afirmou que detestava Viena e que se sentia como que libertado a cada vez que se afastava dessa cidade, onde crescera e à qual ficaria ligado, entretanto, por laços indestrutíveis. Sua consciência da identidade judaica permaneceria assim, pois sua origem nunca foi para ele uma fonte de sentimentos de inferioridade, embora ela lhe causasse problemas e dificuldades suplementares, principalmente em sua vida profissional”.
Sua posição doutrinária está centrada na teoria do núcleo patogênico, constituído na infância, por ocasião de um trauma sexual real, decorrente da sedução por um adulto. O sintoma é a conseqüência do recalcamento das representações insuportáveis que constituem esse núcleo, e o tratamento consiste em trazer a consciência os elementos, como se extrai um “corpo estranho” , sendo a conseqüência do levantamento do recalque o desaparecimento do sintoma.
Durante alguns dos anos que antecederam a publicação de “A interpretação de sonhos”, Freud introduz na nosografia, à qual não é indiferente, alguma entidade nova. Descreve a neurose de angústia, separando-a da categoria bastante heteróclita da neurastenia. Isola, pela primeira vez, a neurose obsessiva (alem. Zwangsneurose) e propõe o conceito de psiconeurose de defesa, no qual é integrada a paranóia.
Porém, sua principal tarefa é a auto-análise, termo que irá empregar por pouco tempo. Eis o que diz sobre isto, na carta a W.Fliess, de 14 de novembro de 1887: “Minha auto-análise continua sempre em projeto, agora compreendi o motivo. É porque não posso analisar a mim mesmo a não ser me servindo de conhecimentos adquiridos objetivamente (como para um estranho). Uma verdadeira auto-análise é realmente impossível, de outro modo não haveria mais doença”.
No âmbito de sua amizade com Fliess, ocorreram vários acontecimentos maiores na vida de Freud: sua auto-análise, um intercâmbio de caso (Emma Eckstein), a publicação de um primeiro grande livro, “Estudos sobre a histeria”, no qual são relatadas várias histórias de mulheres (Bertha Pappenheim, Fanny Moser, Aurélia Öhm, Anna von Lieben, Lucy, Elisabeth von R., Mathilde H., Rosalie H.), e enfim o abandono da teoria da sedução segundo a qual toda neurose se explicaria por um trauma real. Essa renúncia, fundamental para a história da psicanálise, ocorreu em 21 de setembro de 1897. Freud comunicou-a a Fliesse em tom enfático, em uma carta que se tornaria célebre: “Não acredito mais na minha Neurótica.”
O encontro com Fliess remonta a 1887. Freud começa a analisar sistematicamente seus sonhos, a partir de julho de 1895. Tudo se passa como se Freud, sem antes se dar conta disso, tivesse utilizado Fliess como intérprete, para efetuar sua própria análise. Seu pai morreu em 23 de outubro de 1896. Poder-se-ia pensar que tal acontecimento não foi estranho à descoberta do complexo de Édipo, do qual se encontra, um ano mais tarde, na carta a Fliess de 15 de outubro de 1897, a seguinte primeira formulação esquemática: “Acorreu-me ao espírito uma única idéia, de valor geral. Encontrei em mim, como em todo lugar, sentimentos de amor para com minha mãe e de ciúme para com meu pai, sentimentos que são, acho eu, comuns a todas as crianças pequenas, mesmo quando seu aparecimento não é tão precoce como nas crianças que se tornaram histéricas (de uma forma análoga à da romantização original nos paranóicos, heróis e fundadores de religiões). Se isso for assim, pode-se compreender, apesar de todas as objeções racionais que se opõem à hipótese de uma fatalidade inexorável, o efeito percebido em ‘Édipo rei’. Também se pode compreender por que todos os dramas mais recentes do destino deveriam acabar miseravelmente...mas a lenda grega percebeu uma compulsão que todos reconhecem, pois todos a”. sentiram. Cada ouvinte foi, um dia, em germe, em imaginação, um Édipo, e espanta-se diante da realização de seu sonho, transportado para a realidade, estremecendo conforme o tamanho do recalcamento que separa seu estado infantil de seu estado atual”.
Começou então a elaborar sua doutrina da fantasia, concebendo em seguida uma nova teoria do sonho e do inconsciente , centrada no recalcamento e no complexo de Édipo. Seu interesse pela tragédia de Sófocles foi contemporâneo de sua paixão por Hamlet. Freud era um grande leitor de literatura inglesa, alimentando-se especialmente da obra de Shakespeare: “Uma idéia atravessou o meu espírito, escreveu a Fliess em 1897, de que o conflito edipiano encenado em ‘Édipo rei’ de Sófocles poderia estar também no cerne de Hamlet. Não acredito em uma intenção consciente de Shakespeare, mas, antes, que um acontecimento real levou o poeta a escrever esse drama, tendo seu próprio inconsciente lhe permitido compreender o inconsciente do seu herói.” A ruptura definitiva com Fliess ocorrerá em 1902.
Depois de 1926, e a despeito de uma longa discussão com James Strachey, Freud acabaria cedendo à crença segundo a qual Shakespeare não era o autor de sua obra. Aliás, esse tema do deslocamento da atribuição de uma paternidade ou de uma identidade se encontraria por várias vezes em sua obra, principalmente em “Moisés e o monoteísmo”, na qual fez de Moisés um egípcio.
Da nova teoria do inconsciente nasceria um segundo grande livro, publicado em novembro de 1899, “A Interpretação dos Sonhos” (Die Traumdeutung), no qual é relatado o sonho da “Injeção de Irmã”, ocorrido quando Freud estava em Bellevue, em julho de 1895, em um pequeno castelo na floresta vienense: “Você acredita, (escreveu a Fliess no dia 12 de julho de 1900), que haverá um dia nesta casa uma placa de mármore com esta inscrição: Foi nesta casa que, em 24 de julho de 1895, o ministério do sonho foi revelado ao doutor Sigmund Freud? Até agora, tenho pouca esperança.” O postulado inicial introduz uma ruptura radical com todos os discursos anteriores. O absurdo, a incongruência dos sonhos não é um acidente de ordem mecânica; o sonho tem um sentido, esse sentido está escondido e não decorre das figuras utilizadas pelo sonho, mas de um conjunto de elementos pertencentes ao próprio sonhador, fazendo com que a descoberta do sentido oculto dependa das “associações” produzidas pelo sujeito. Exclui-se, portanto, que esse sentido possa ser determinado sem a colaboração do sonhador.
Aquilo com que estamos lidando é um texto; sem dúvida, o sonho é constituído principalmente de imagens, mas o acesso a elas só pode ser obtido pela narrativa do sonhador, que constitui seu “conteúdo manifesto”, que é preciso decifrar, como Champollion fez com os hieróglifos egípcios, para descobrir seu “conteúdo latente”. O sonho é constituído como os “restos diurnos”, aos quais são transferidos os investimentos afetados pelas representações de desejo. O sonho, ao mesmo tempo em que protege o sono, assegura, de uma forma camuflada, uma certa “realização de desejo”. A elaboração do sonho é feita por técnicas especiais, estranhas ao pensamento consciente, a condensação (um mesmo elemento representava vários pensamentos do sonho) e o deslocamento (um elemento do sonho é colocado no lugar de um pensamento latente).
Resultam dessa concepção do sonho uma estrutura particular do aparelho psíquico, que foi objeto do sétimo e último capítulo. Mais do que a divisão em três instâncias, consciente, pré-consciente e inconsciente, que especifica o que se chama de primeira tópica, convém conservar a idéia de uma divisão do psiquismo em dois tipos de instâncias, obedecendo a leis diferentes e separadas por uma fronteira que só pode ser ultrapassada em determinadas condições, consciente-pré-consciente, por um lado, inconsciente, por outro. Esse corte é radical e irredutível, nunca poderá haver “síntese”, mas apenas “tendência à síntese”. O sentimento próprio ao eu da unidade que constitui nosso mental não é mais do que uma ilusão. Um aparelho desse tipo torna problemática a apreensão da realidade, que deve ser constituída pelo sujeito. A posição de Freud, aqui, é a mesma expressa no “Projeto”: “O inconsciente é o próprio psíquico e sua realidade essencial. Sua natureza íntima nos é tão desconhecida como a realidade do mundo exterior, e a consciência nos ensina sobre ela de uma maneira tão incompleta como nossos órgãos dos sentidos sobre o mundo exterior”.
Para Freud, o sonho se encontra em uma espécie de encruzilhada entre o normal e o patológico, e as conclusões concernentes ao sonho serão consideradas por ele como válidas para explicar os estados neuróticos.
“A psicopatologia da vida cotidiana” (Zur Psychopathologie dês Alltagslebens) é publicado no ano seguinte, em 1901. Ela começa, por exemplo, com um esquecimento de nome, o de Signorelli, análise já publicada por Freud em 1898; o esquecimento associa, em sua determinação, tanto com motivos sexuais como a idéia de morte. A obra reúne toda uma série de pequenos acidentes, aos quais quase não se dá, via de regra, nenhuma atenção, como os esquecimentos de palavras, as “lembranças encobridoras”, os lapsos da palavra ou escrita, os erros de leitura e escrita, os equívocos, os atos falhos, etc.
Esses fatos podem ser considerados como manifestações do inconsciente, nas seguintes três condições: 1.não deve ultrapassar um certo limite fixado por nosso juízo, isto é, aquilo que chamamos de “os limites do ato normal”; 2.devem ter caráter de um distúrbio momentâneo; 3.não podem ser caracterizados assim a não ser que os motivos nos escapem e que fiquemos reduzidos a invocar o “acaso” ou a “falta de atenção”.
“Ao colocar os atos falhos na mesma categoria das manifestações das psiconeuroses, damos um sentido e uma base a duas afirmativas que ouve repetir com freqüência, a saber, que entre o estado nervoso normal e o funcionamento nervoso anormal, não existe um limite claro e marcado (...). Todos os fenômenos em questão, sem nenhuma exceção, permitem que se chegue aos materiais psíquicos reprimidos incompletamente e que, embora recalcados pela consciência, não perderam toda a possibilidade de se manifestar e se exprimir”.
O terceiro texto, “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (Der Witz und seine Beziehung zum Unbewuften), é publicado em 1905. Diante desse material logo e difícil, alguns se perguntaram por que Freud tinha julgado necessário acumular uma quantidade tão grande de exemplos, com uma classificação complicada. Sem dúvida, porque suas teses eram difíceis de pôr em evidência. Eis as principais. “O espírito reside apenas na expressão verbal”. Os mecanismos são os mesmos do sonho, a condensação e o deslocamento. O prazer que o espírito engendra está ligado à técnica e à tendência satisfeita, hostil ou obscena. Porém, um terceiro ocupa sobretudo nele um papel principal, e é isso o que o distingue do cômico. “O espírito em geral precisa da intervenção de três personagens: aquele que faz a palavra, aquele que se diverte com a verve hostil ou sexual e, enfim, aquele no qual é realizada a intenção do espírito, que é a de produzir prazer”. Finalmente: “Só é espirituoso aquilo que é aceito como tal”. Compreende-se então a dificuldade para traduzir a palavra alemã “Witz”, que não tem equivalente em francês, mas também a dificuldade de seu manejo em alemão, por aquilo que acaba de ser lembrado e pela diversidade dos exemplos utilizados, histórias engraçadas, chistes, trocadilhos, etc. A especificidade do “Witz” explica a atenção que Freud tem em distingui-lo do cômico, distinção assim resumida: “O espírito é, por assim dizer, para o cômico, a contribuição que lhe vem do domínio do inconsciente”.
No mesmo ano, surgem os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie), onde é afirmada e ilustrada a importância da sexualidade infantil e proposto um esquema da evolução da libido, por suas fases caracterizadas pela sucessiva dominância das zonas erógenas bucal, anal e genital. Nesse texto a criança, em relação à sexualidade, é definida como um “perverso polimorfo”, e a neurose é situada como “o negativo da perversão”.
Mais ou menos entre 1905 e 1918, irão se suceder um grande número de textos referentes à técnica e, para ilustra-la, apresentações de casos clínicos. Entre estes últimos estão as “Cinco psicanálises”:
Em 1905, “Fragmento da análise de um caso de histeria”: observação de uma paciente chamada Dora, centrada em dois sonhos principais, cujo trabalho de interpretação ocupa sua maior parte.
Em 1909, “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos” (o pequeno Hans): Freud verifica a exatidão das “reconstituições” efetuadas no adulto.
Também em 1909, “Notas sobre um caso de neurose obsessiva” (O Homem dos Ratos): a análise é dominada por um voto inconsciente de morte, e Freud se espanta ao verificar, “ainda mais” em um obsessivo, as descobertas feitas no estudo da histeria.
Em 1911, “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia” (Dementia paranoides) (o presidente Schreber): a particularidade dessa análise se prende ao fato de que Freud nunca encontrou o paciente, contentando-se em trabalhar com as “Memórias” nas quais este descrevera sua doença, dando a elas um interesse científico.
Finalmente, em 1918, “História de uma neurose infantil” (O Homem dos Lobos): a observação foi para Freud de particular importância. Ela fornecia a prova da existência, na criança, de uma neurose perfeitamente constituída, seja ela aparente ou não, nada mais sendo a do adulto do que uma exteriorização e repetição da neurose infantil; ela demonstrou a importância dos motivos libidinais e a ausência de aspirações culturais, ao contrário de C. Jung; ela forneceu uma exata ilustração da constituição do fantasma e do lugar da cena primitiva.
Em 1902, com Alfred Adler, Wilhelm Stekel, Max Kahane (1866-1923) e Rudolf Reitler (1865-1917), fundou a Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, primeiro círculo da história do freudismo. Durante os anos que se seguiram, muitas personalidades do mundo vienense se juntaram ao grupo: Paul Federn, Otto Rank, Fritz Wittels, Isidor Sadger. Foi durante essas reuniões que se elaborou a idéia de uma possível aplicação da psicanálise a todas as áreas do saber: literatura, antropologia, história, etc. O próprio Freud defendeu a noção de psicanálise aplicada, publicando uma fantasia literária: “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907)”.
Em 1907 e 1908, o círculo dos primeiros discípulos freudianos se ampliou ainda mais, com a adesão à psicanálise de Hanns Sachs, Sandor Ferenczi, Karl Abraham, Ernest Jones, Abraham Arden Brill e Max Eitingon.
Durante o primeiro quarto do século, a doutrina freudiana se implantou em vários países: Grã-Bretanha, Hungria, Alemanha, costa leste dos Estados Unidos. Na Suíça produziu-se um acontecimento maior na história do movimento psicanalítico : Eugen Bleuler, médico-chefe da clínica do Hospital Burghölzli de Zurique, começou a aplicar o método psicanalítico ao tratamento das psicoses, inventando ao mesmo tempo a noção de esquizofrenia. Uma nova “terra prometida” se abriu assim à doutrina freudiana: ela podia a partir de então investir o saber psiquiátrico e tentar dar uma solução para o enigma da loucura humana.
No dia 3 de março de 1907, Carl Gustav Jung, aluno e assistente de Bleuler, foi a Viena para conhecer Freud. Depois de várias horas de conversa, ficou encantado com esse novo mestre. Seria o primeiro discípulo não-judeu de Freud.
Em 1909, a convite de Grandville Stanley Hall, Freud foi, em companhia de Jung e de Ferenczi, à Clark University de Worcester, em Massachusetts, para dar cinco conferências, que seriam reunidas sob o título de “Cinco lições de psicanálise”. Apesar de um encontro produtivo com James Jackson Putnam e de um sucesso considerável, Freud não gostou do continente americano. Durante toda a vida, desconfiaria do espírito pragmático e puritado desse país que acolhia suas idéias com entusiasmo ingênuo e desconcertante.
Temendo o anti-semitismo e que a psicanálise fosse assimilada a uma “ciência-judaica”, Freud decidiu “desjudalizá-la”, pondo Jung à frente, como presidente, do movimento. Depois de um primeiro congresso, que reuniu em Salzburgo em 1908 todas as sociedades locais, criou com Ferenczi, em Nuremberg, em 1910, uma associação internacional, a Sociedade Psicanalítica de Viena “Internationale Psychoanalytische Vereinigung” (IPV). Em 1933, a sigla alemã seria abandonada. A IPV se tornaria então a Associação Internacional de Psicanálise “International Psychoanalytical Association” (IPA).
Entre 1909 e 1913, Freud publicou mais duas obras: “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância” (1910) e “Totem e tabu” (1912-1913). A partir de 1910, a expansão do movimento se traduziu por dissidências, tendo como motivo simultaneamente quer elas pessoais e questões teóricas e técnicas. Às rivalidades narcísicas se acrescentaram críticas sobre a duração dos tratamentos, a questão da transferência e da contratransferência, o lugar da sexualidade e a definição da noção de inconsciente.
Inicialmente, está a questão do pai, tratada com uma excepcional amplidão, em “Totem e tabu”, e retomada a partir de um exemplo particular, em “Moisés e o monoteísmo” (1932-1938). Ela constitui um dos pontos mais difíceis da doutrina de Freud, devido ao polimorfismo da função paterna em sua obra. Mais tarde, foi o conceito de narcisismo que foi objeto do grande artigo em 1914, “Sobre o narcisismo: uma introdução”, necessária para levantar as dificuldades encontradas na análise de Schreber e tentar explicar as psicoses, mas também para esboçar uma teoria do eu. “O estranho” (Das Unheimliche), publicado em 1919, refere-se especialmente à problemática da castração. Porém, a maior alteração decorreu da conceitualização do automatismo de repetição e do instinto de morte, que são o assunto de “Além do princípio de prazer” (Jenseits dês Lustprinzips, 1920). A teoria do eu e da identificação serão os temas centrais de “Psicologia de grupo e análise do ego” (Massenpsychologie umd Ich-Analyse, 1921).
Finalmente, “A Negativa” (Die Verneinung, 1925) irá sublinhar a primazia da palavra, na experiência psicanalítica, ao mesmo tempo em que define um modo particular de presentificação do inconsciente.
Freud nunca deixou de tentar reunir, em uma visão que chama de metapsicologia, as descobertas que sua técnica permitiu e as elaborações que nunca deixaram de acompanhar sua prática, mesmo afirmando que esse esforço não deveria ser interpretado como uma tentativa de constituição de uma nova “visão do mundo” (Weltanschauung).
Certos remanejamentos valem como correções de posições anteriores. Este é o caso da teoria do fantasma que, por volta de 1910, irá substituir a primeira teoria traumática da sedução precoce (Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, 1907; Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, 1911; “O Homem dos Lobos”, 1918).
Esse também foi o caso do masoquismo, considerado, num primeiro momento, como uma inversão do sadismo. As teses de “Além do princípio do prazer” permitirão a concepção de um masoquismo primário, que Freud será levado a tornar equivalente, em “O problema econômico do masoquismo” (1925), ao instinto de morte e ao sentimento de culpa irredutível e inexplicado, revelado por certas análises.
De forma sem dúvida arbitrária, pode-se classificar, nos remanejamentos tornados necessários devido ao desgaste dos termos (embora muitos outros motivos o justifiquem), a introdução da segunda tópica, constituída pela três instâncias, isso, eu e supereu (O ego e o id [Das Ich und das Es], 1923), as novas considerações sobre a angústia, como sinal de perigo (Inibições, sintomas e ansiedade/angústia [Hemmung, Symptom und Angst], 1926) e, finalmente, o último texto, inacabado, “A divisão do ego no processo de defesa (Die Ichspaltung im Abwehvorgang, 1938), no qual Freud anuncia que, apesar das aparências, o que irá dizer, referindo-se à observação do artigo de 1927, sobre o fetichismo, também era então totalmente novo. E, de fato, as formulações nele propostas apresentem-se como um esboço de uma remodelagem de toda a economia de sua doutrina.”
Na obra de Freud, dois textos possuem, aparentemente, um estatuto um tanto especial. São eles “O futuro de uma ilusão” (Die Zukunft einer Illusion), publicado em 1927, que examina a questão da religião, e “O mal-estar na civilização” (Das Unbehagen in der Kultur, 1929), dedicado ao problema da felicidade, considerada pro Freud inatingível, e às exigências exorbitantes da organização social ao sujeito humano.
De fato, trata-se da consideração de fenômenos sociais, à luz da experiência psicanalítica. Na realidade, como sempre acontece com Freud, o ângulo escolhido para tratar de qualquer questão serve-lhe, antes de tudo, para dar esclarecimentos ou indicações sobre aspectos importantes da experiência. Isso ocorre, em “O Futuro”, com a questão do pai e a de Deus, como seu corolário; em “O mal-estar”, a maldade fundamental do ser humano e a constatação paradoxal de que quanto mais o sujeito satisfaz os imperativos morais, os do supereu, mais este se mostra exigente.
Em 1911, Adler e Stekel se separaram do grupo freudiano. Dois anos depois, Jung e Freud romperam todas as suas relações. Não suportando desvios em relação à sua doutrina, Freud publicou, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, um verdadeiro panfleto, “A história do movimento psicanalítico”, no qual denunciou as traições de Jung e Adler. Depois, criou um Comitê Secreto, composto de seus melhores paladinos, aos quais distribuiu um anel de fidelidade.
Longe de evitar as dissidências, essa iniciativa levou a novas querelas. Apoiados por Jones, os berlinenses (Abraham e Eitingon) preconizava a ortodoxia institucional, enquanto os austro-húngaros (Rank e Ferenczi) se interessavam mais pelas inovações técnicas. Uma nova dissidência marcou ainda a história desse primeiro freudismo: a de Wilhelm Reich.
Por volta de 1930, o fenômeno da dissidência deu lugar às cisões, característica da transformação da psicanálise em um movimento de massa. A partir daí eram os grupos que se enfrentavam, não mais os discípulos ou os pioneiros em rivalidade com o mestre. Isolado em Viena, mas célebre no mundo inteiro, Freud prosseguiu sua obra, sem conseguir controlar a política de seu movimento. Entre 1919 e 1933, a IPA se transformou em uma verdadeira máquina burocrática, com a responsabilidade de resolver todos os problemas técnicos relativos à formação dos psicanalistas.
No fim da Primeira Guerra Mundial, a discussão sobre o caráter traumático das afecções psíquicas foi relançada, com o aparecimento das neuroses de guerra. Freud foi então confrontado com seu velho rival Julius Wagner Jauregg, acusado de ter submetido soldados julgados simuladores a inúteis tratamentos elétricos. Nesse debate, Freud interveio de maneira magistral para demonstrar a superioridade da psicanálise sobre todos os outros métodos.
Com o desmoronamento do império austro-húngaro, Berlim se tornou a capital do freudismo, como provou a criação do Berliner Psychoanalytisches Institut (BPI), e as numerosas atividades do instituto de Frankfurt em torno de Otto Fenichel e da “esquerda freudiana”. Enquanto os americanos afluíam a Viena para se formar no divã do mestre, este analisava a própria filha, Anna Freud. Esta não tardaria a tornar-se chefe de escola e opor-se a Melanie Klein, sua principal rival no campo da psicanálise de crianças. Nesse aspecto, a oposição entre a escola vienense, que se desenvolveu na IPA a partir de 1924 e que girava em torno da questão da sexualidade feminina, mostrou o lugar cada vez mais importante das mulheres no movimento psicanalítico. No centro dessa polêmica, Freud manteve sua teoria da libido única e do falocentrismo, sem com isso mostrar-se misógino. Ligado em sua vida particular a uma concepção burguesa da família patriarcal, adotava todavia, em suas amizades com mulheres intelectuais, uma atitude perfeitamente cortês, moderna e igualitária. Por sua doutrina e por sua condição de terapeuta, desempenhou um papel na emancipação feminina.
Nos anos 1920, Freud publicou três obras fundamentais, através das quais definiu sua segunda tópica e remanejou inteiramente sua teoria do inconsciente e do dualismo pulsional: “Mais-além do princípio do prazer” (1920), “`Psicologia das massas e análise do eu” (1921), “O eu e o isso” (1923). Esse movimento de reformulação conceitual já começara em 1914, quando da publicação de um artigo dedicado à questão do narcisismo. Confirmou-se, em 1915, com a elaboração de uma metapsicologia e a publicação de um ensaio sobre a guerra e a morte, no qual Freud sublinhava a necessidade para o sujeito de “organizar-se em vista da morte, a fim de melhor suportar a vida”. Dessa reformulação, centrada na dialética da vida e da morte e em uma acentuação da oposição entre o eu e o isso, nasceriam as diferentes correntes do freudismo moderno: kleinismo, Ego Psychology, Self Psychology, lacanismo, annafreudismo, Independentes.
Para postular a existência de uma pulsão de morte, Freud revalorizou duas figuras da mitologia grega: Eros e Tânatos. Essa revisão da doutrina original se produziu em um momento em que a sociedade vienense, já preocupada com a sua própria morte desde o fim do século, se confrontava com a negação absoluta de sua identidade: a Áustria dessa época, como enfatizou Stefan Zweig, era, no mapa da Europa, apenas “uma luz crepuscular”, uma “sombra cinzenta, difusa e sem vida, da antiga monarquia imperial”.
Em fevereiro de 1923, Freud descobriu, do lado direito de seu palato, um pequeno tumor, que devia ser logo extirpado. Em um primeiro tempo, Felix Deutsch, seu médico, lhe ocultou a natureza maligna desse tumor. Freud se indispôs com ele. Seis meses depois, Hans Pichler, cirurgião vienense, procedeu a uma intervenção radical: a ablação dos maxilares e da parte direita do palato. Trinta e uma operções seriam feitas posteriormente, sob a supervisão de Max Schur. Freud foi obrigado a suportar uma prótese, que ele chamava de “monstro”. “Com seu palato artificial, escreveu Zweig, ele tinha visivelmente dificuldade para falar [...]. Mas não abandonava seus interlocutores. Sua alma de aço tinha a ambição particular de provar a seus amigos que sua vontade era mais forte que os tormentos mesquinhos que o seu corpo lhe infligia [...]. Era um combate terrível, e cada vez mais sublime à medida que se estendia. Cada vez que eu o via, a morte jogava mais distintamente sua sombra sobre seu rosto [...]. Um dia, quando de uma de minhas últimas visitas, levei comigo Salvador Dali, a meu ver o pintor mais talentoso da jovem geração, que devotava a Freud uma veneração extraordinária. Enquanto eu falava, ele desenhou um esboço. Nunca tive coragem de mostrá-lo a Freud, pois Dali, em sua clarividência, já representara o trabalho da morte.”
A doença não impedia Freud de prosseguir com suas atividades, mas o mantinha afastado das questões do movimento psicanalítico, e foi Jones quem presidiu os destinos da IPA a partir de 1934, data na qual Max Eitingon foi obrigado a deixar a Alemanha.
Apaixonado por telepatia, Freud não hesitou em se dedicar, com Ferenczi, entre 1921 e 1933, a experiências ditas “ocultas”, que iam contra a política jonesiana, que visava dar à psicanálise uma base racional, científica e médica. Em 1926, depois de um processo intentado contra Theodor Reik, tomou vigorosamente a defesa dos psicanalistas não-médicos, publicando “A questão da análise leiga”. No ano seguinte, deflagrou com seu amigo Oskar Pfister uma polêmica ao publicar “O futuro de uma ilusão”, obra na qual comparava a religião a uma neurose. Enfim, em 1930, com “O mal-estar na cultura”, questionava a capacidade das sociedades democráticas modernas de dominar as pulsões destrutivas que levam os homens à sua perda. Dois anos depois, em um intercâmbio com Albert Einstein (1879-1955), enfatizou que o desenvolvimento da cultura era sempre uma maneira de trabalhar contra a guerra. Entre 1929 e 1939, manteve uma crônica de seus encontros (Kürzeste Chronik, Crônica brevíssima), que seria publicada por Michael Molnar em Londres, em 1992. Cada vez mais pessimista quanto ao futuro da humanidade, Freud não tinha nenhuma ilusão sobre a maneira como o nazismo tratava os judeus e a psicanálise: “Como homem verdadeiramente humano, escreveu Zweig, ele estava profundamente abalado, mas o pensador não se surpreendia absolutamente com a espantosa irrupção da bestialidade.” Entretanto, no dia seguinte ao incêndio do Reichstag, decidiu com Eitingon manter a existência do BPI. Embora não aprovasse a política de “salvamento” da psicanálise, preconizada por Jones, cometeu o erro de privilegiar a luta contra os dissidentes (Reich e os adlerianos), ao invés de recusar qualquer compromisso com Matthias Heinrich Göring, o que teria levado à suspensão de todas as atividades psicanalíticas, logo que Hitler chegou ao poder.
Mas em março de 1938, no momento da invasão da Áustria pelas tropas alemãs, Richard Sterba agiu em sentido contrário, decidindo recusar a política de Jones e não criar em Viena um instituto “arianizado” como o de Göring, em Berlim. Tomou-se então a decisão de dissolver a Wiener Psychoanalytische Vereinigung (WPV) e transportá-la “para onde Freud fosse morar”. Graças à intervenção do diplomata americano William Bullitt (1891-1967) e a um resgate pago por Marie Bonaparte, Freud pôde deixar Viena com sua família. No momento de partir, foi obrigado a assinar uma declaração na qual afirmava que nem ele nem seus próximos haviam sido importunados pelos funcionários do Partido Nacional-Socialista. Em Londres, instalou-se em uma bela casa em Maresfield Gardes 20, futuro Freud Museum. Ali, redigiu sua última obra, “Moisés e o monoteísmo”. Nunca saberia do destino dado pelos nazistas às suas quatro irmãs, exterminadas em campos de concentração.
No começo do mês de setembro de 1939, escutava o rádio todos os dias. Aos seus familiares, que lhe perguntavam se aquela seria a última guerra, respondia: “Será minha última guerra.” Iniciou então a leitura de “Peau de chagrin” de Honoré de Balzac (1799-1850): “É exatamente disso que preciso, disse, este livro fala de definhamento e de morte por inanição.” Em 21 de setembro, pegou a mão de Max Schur e lembrou o primeiro encontro dos dois: “Você prometeu não me abandonar quando chegasse a hora. Agora é só uma tortura sem sentido.” Depois, acrescentou: “Fale com Anna; se ela achar que está bem, vamos acabar com isso.” Consultada, Anna quis adiar o instante fatal, mas Schur insistiu e ela aceitou a decisão. Por três vezes, ela deu a Freud uma injeção de três centigramas de morfina. Em 23 de setembro, às três horas da manhã, depois de dois dias de coma, Freud morreu tranqüilamente: “Foi a sublime conclusão de uma vida sublime, escreveu Zweig, uma morte memorável em meio à hecatombe, daquela época mortífera. E quando nós, seus amigos, enterramos seu caixão, sabíamos que confiávamos à terra inglesa o que a nossa pátria tinha de melhor.” As cinzas de Freud repousam no crematório de Golders Green.
Centenas de obras foram escritas no mundo sobre Freud e algumas dezenas de biografias lhe foram consagradas, de Fritz Wittels a Peter Gay, passando por Lou Andréas Salomé, Thomas Mann, Siegfried Bernfld, Ernest Jones, Ola Andersson, Henri F. Ellenberger, Max Schur, Kurt Eissler, Didier Anzieu, Carl Schorske. Sua obra, traduzida em cerca de 30 línguas, é composta de 24 livros propriamente ditos (dos quais dois em colaboração, um com Josef Breuer, outro com William Bullitt) e de 123 artigos. Freud também escreveu prefácios, necrológios, intervenções diversas em congressos e contribuições para enciclopédias.
Acredita-se geralmente que a psicanálise renovou o interesse tradicionalmente atribuído aos eventos da existência para compreender ou interpretar o comportamento e as obras dos homens excepcionais. Isso não é verdade, e Freud, sobre isso, é categórico: “Quem quiser se tornar biógrafo deve se comprometer com a mentira, a dissimulação, a hipocrisia e até mesmo com a dissimulação de sua incompreensão, pois a verdade biográfica não é acessível e, se o fosse, não serviria de nada” (carta a A. Zweig, de 31 de maio de 1936).
Kurt Eissler avaliou em 15 mil o número de cartas escritas por Freud e em cerca de 10 mil as que estão depositadas na Biblioteca do Congresso, em Washington ou seja uma perda de aproximadamente cinco mil peças. O historiador alemão Gerhard Fichtner propôs outras cifras. Segundo ele, Freud teria escrito cerca de 20 mil cartas. Dez mil teriam sido destruídas ou perdidas, cinco mil estão conservadas e cinco mil ainda poderiam ser encontradas no século XXI, ou seja dez mil no total. Observe-se que Freud destruiu ou perdeu uma parte das cartas que seus correspondentes lhe enviaram, particularmente as de Wilhelm Fliess.
Três mil e duzentas cartas de Freud foram publicadas, entre as quais as dirigidas a Eduard Silberstein, Wilhelm Fliess, Lou Andréas-Salomé, Ernest Jones, Carl Gustav Jung, Sandor Ferenczi, Romain Rolland, Arnold Zweig, Stefan Zweig, Edoardo Weiss, Oska Pfister (expurgadas), Karl Abraham (expurgadas).
Duas edições completas da obra de Freud em alemão foram realizadas: uma durante sua vida, os “Gesammelte Schriften”, a outra depois em sua morte, as “Gesammelte Werke (GW)”, publicadas primeiro em Londres, depois em Frankfurt. As GW se tornaram, universalmente, a edição de referência. Foram completadas por dois outros volumes, um “Índice” e um volume de suplementos (Nachtragsband), realizado por Ângela Richards e Ilse Grubrich-Simitis. A estes se acrescentam uma edição dita de estudos, a Studienausgabe, elaborada por Alexander Mitscherlich e composta de um seleção de textos. Apesar de todos os esforços de Mitscerlich e de Ilse Grubrich-Simitis, nenhuma edição dita crítica das GW (notas, comentários, apresentações, etc.) foi publicada na Alemanha.
A edição inglesa, realizada por James Strachey sob o título “Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (SE)”, é a única edição crítica da obra de Freud. É por isso que, mais ainda do que as “Gesammelte Werke”, é uma obra de referência no mundo inteiro.
Em razão da oposição dos herdeiros nenhum dos textos de Freud anterior ao ano de 1886 foi integrado às diversas obras completas. Ora, durante esse período, dito pré-psicanalítico, que se estendeu de 1877 a 1886, Freud publicou 21 artigos sobre temas diversos: neurologia, medicina, histologia, cocaína, etc. Esses artigos foram recenseados em 1973 por Roger Dufresne.
Em 1967, Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis isolaram cerca de 90 conceitos estritamente freudianos no interior de um vocabulário psicanalítico composto de 430 termos. Esses conceitos foram objeto de múltiplas revisões, efetuadas pelos grandes teóricos e clínicos do freudismo: Sandor Ferenczi, Melanie Klein, Jacques Lacan, Donald Woods Winnicott, Heinz Kohut, etc.
Observe-se que Freud publicou cinco grandes casos clínicos, que foram comentados ou revistos por seus sucessores: Ida Bauer (Dora), Herbert Graf (O Pequeno Hans), Ernst Lanzer (O Homem dos Ratos), Daniel Paul Schreber, Serguei Constantinovitch Pankejeff (O Homem dos Lobos). Segundo o quadro das filiações estabelecido por Ernst Falzeder em 1994, Freud formou na análise didática mais de 60 práticos, na maioria alemães, autríacos, ingleses, húngaros, neerlandeses, americanos, suíços, aos quais se acrescentam os pacientes cuja identidade se ignora.
Foi talvez Stefan Zweig, em 1942, quem redigiu um dos relatos mais realistas de Freud: “Não se podia imaginar um indivíduo de espírito mais intrépido. Freud ousava a cada instante expressar o que pensava, mesmo quando sabia que inquietava e perturbava com suas declarações claras e inexoráveis; nunca procurava tornar sua posição menos difícil através da menor concessão, mesmo de pura forma. Estou convencido de que Freud poderia ter exposto, sem encontrar resistência por parte da universidade, quatro quintos de suas teorias, se estivesse disposto a vesti-las prudentemente, a dizer “erótico” em vez de “sexualidade”, “Eros” em vez de “libido” e a não ir sempre até o fundo das coisas, mas limitar-se a sugeri-las. Mas, desde que se tratasse de seu ensino e da verdade, ficava intransigente; quanto mais firme era a resistência, tanto mais ele se afirmava em sua resolução. Quando procuro um símbolo da coragem moral- o único heroísmo no mundo que não exige vítimas – vejo sempre diante de mim o belo rosto de Freud, com sua clareza viril, com seus olhos sombrios de olhar reto e viril”.
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Bibliografia:
FREUD, SIGMUND, Obras Psicológicas Completas versão 2.0.
ROUDINESCO, ELISABETH - Dicionário de Psicanálise, Jorge Zahar Editor, RJ-1997.
CHEMAMA, ROLAND - Dicionário de Psicanálise Larousse, Artes Médicas, RS-1995.
LAPLANCHE E PONTALIS – Vocabulário da Psicanálise, Martins Fontes, SP-2000.
KAUFMANN, PIERRE – Primeiro Grande Dicionário Lacaniano, Jorge Zahar Editor, RJ-1996.
NASIO, J-D - Introdução às Obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan, Jorge Zahar Editor, RJ-1995.